quarta-feira, 13 de agosto de 2014

O que é transfeminismo?

Ilustração: Carol Rossetti
Já abordamos aqui o termo transgeneridade. Agora trazemos as raízes históricas do transfeminismo, no qual são pautadas as lutas por direitos das pessoas trans* e a desconstrução binária do gênero. Deste modo, discutir sobre questões trans* é muito mais falar em identidade de gênero do que em sexualidade. Temos, então, o transfeminismo: mas, afinal, por que houve a necessidade deste empoderamento? (Carolina Ferreira)

Por Hailey Kaas
Introdução Geral
O que é transfeminismo? Como surgiu? O que o difere das correntes atuais do feminismo?
Pode-se dizer que o transfeminismo é uma corrente do feminismo tradicional, porém divergem em alguns pontos, como veremos.
Certamente, o transfeminismo bebeu dos primeiros movimentos feministas e dos conceitos feministas em si. Argumenta-se que tenha surgido no meio da segunda onda feminista, em forma de crítica e de reformulação do feminismo da época para a inclusão de pessoas trans* dentro da agenda feminista. Por isso, a segunda onda feminista foi combatida pelo transfeminismo e por novas correntes feministas (terceira onda) no que diz respeito a essencialização e biologização do corpo “feminino”.

Muito embora a terceira onda do feminismo tenha utilizado um discurso anti-essencialista e anti-biologicista para desbancar a ciência machista que tentava (tenta) comprovar machismo através de estudos altamente duvidosos e ideológicos, a compreensão transfeminista é de que o feminismo falhou nessa luta quando a questão trans* é contextualizada. Muito embora muitas correntes reproduzam com frequência a célebre frase da Simone de Beauvoir, “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher” – já desconstruindo a ideia da biologia como destino – resistem em aceitar mulheres trans* como “verdadeiras” mulheres, ou mesmo quando aceitam, não visibilizam.
O mito da mulher universal foi severamente criticado por Judith Butler no famoso livro “Problemas de Gênero – Feminismo e subversão da identidade”, onde argumenta que a pretensão feminista de haver uma mulher universal que pode ser representada, corre o risco de fracassar. Haraway também critica o mesmo em seu livro Manifesto Ciborgue.
Isso ocorreu porque o feminismo de segunda onda reforçavam a ideia de uma representação universal da mulher, afetada igualmente pelo patriarcado. Nessa lógica todas as mulheres estariam ligadas de alguma forma por um fator comum: sofrerem o patriarcado igualmente.
A terceira onda feminista tentou repensar essa lógica inserindo elementos da teoria queer, afrofeminismo (focando no racismo existente dentro do que se chamou de feminismo branco), teorias pós-coloniais e questionamentos do binário de gênero em si. No entanto, mesmo vendo o esforço de algumas correntes em inserir esses elementos na luta feminista, teveDescrição: http://cdncache-a.akamaihd.net/items/it/img/arrow-10x10.png/tem pouco efeito na prática.
Feminismo Radical
Na década de 70-80 surgiu um forte sentimento anti-trans impulsionado pelo famoso livro de Janice Raymond, intitulado “The Transsexual Empire” (O Império Transexual), onde na mesma linha de livros que argumentam existir uma “ditadura gay”, Raymond alerta sobre o “perigo” do patriarcado adentrar o feminismo na figura de mulheres trans*. Ela também reproduz todo tipo de clichê transfóbico (mulheres trans* não são mulheres de verdade; são homens se fantasiando/querendo capturar o “feminino”; são estupradoras em potencial; etc.). Esse sentimento/corrente feminista é nomeado hoje como “radical feminism” ou radfem, e é severamente combatido pelo transfeminismo e por pessoas trans* no geral, pois são inúmeros os episódios transfóbicos envolvendo feminismo radical (confira aqui na parte “criticism”, ou aqui na parte “cissexism in radical feminism”). 
Teóricxs e Ativistas Transfeministas
As vozes proeminentes do transfeminismo incluíram/incluem a famosa Sandy Stone, que escreveu um livro satirizando e criticando Raymond, chamado “The Empire strikes back” (O Império contra-ataca). Ela, inclusive, foi uma das pessoas trans* cujo livro de Raymond cita de forma pejorativa/deslegitimadora. Além disso temos também Sylvia Rivera, ativista do Stonewall e fundadora do grupo Street Transvestite Action Revolutionaries. Kate Bornstein, importantíssima com vários livros ao longo das décadas de 80 e 90 (e até hoje). Inclui também pessoas mais recentes como Julia Serano e Emi Koyama com seu The Transfeminist Manifesto, de 2001; Patrick Califa que utilizou a palavra transfeminismo pela primeira vez impressa em 1997; e Robert Hill, embora eu tenha ressalvas com o último por em suas pesquisas utilizar vários termos pejorativos (como tranny [traveco/trava]) dessa forma não compreendendo o objetivo transfeminista, a meu ver.
Transfeminismo
Após contextualizar o surgimento e xs teóricxs/ativistas de destaque, resta saber o que quer o transfeminismo. Como exposto acima, o feminismo não deu conta de incluir pessoas trans* em suas agendas, ora por pura ignorância/falta de visibilidade, ora por pura transfobia. O movimento trans* – as pessoas trans* – não estão livres do machismo, assim como as mulheres cisgêneras (não trans*) também não estão. Sabemos que é comum encontrarmos mulheres cis reproduzindo discursos slut-shaming [que condenam a sexualidade das mulheres] ou mesmo retrô-sexismo (piadas de fogão/louça e afins). Também não é incomum vermos falta de credibilidade/solidariedade mesmo entre as mulheres em casos de estupro. Por isso o feminismo é importante, porque como argumenta-se, se todas as mulheres tivessem consciência de sua opressão não haveria necessidade do feminismo.
Assim também é na esfera trans*. As pessoas trans* irão constantemente reproduzir valores machistas e ideais/padrões de beleza geralmente quando transicionam. Irão julgar as aparências de acordo com o padrão de feminilidade ou masculinidade imposto pelo projeto machista de gênero existente e irão reproduzir valores cissexistas dentro da comunidade trans*(por ex. se você não fez a CRS ainda você não é mulher “por completo”; se não fez mastectomia não é homem “de verdade” etc.).
Assim como o feminismo de terceira onda, o transfeminismo se pautou (e ainda se pauta) na teoria queer e estudos pós-coloniais.
Abaixo seguem os principais pontos compilados por mim, no que diz respeito a agenda transfeminista.
1) Combate à violência cissexista/transfóbica
Combate à violência discursiva: O linguajar cissexista reproduzido e naturalizado é nocivo às pessoas trans*, pois reforça certos estereótipos negativos e também a noção patologizante/psiquiatrizante (linguagem médica, por exemplo).  
Combate à violência físico-verbal: reflexo da violência discursiva institucionalizada – palavras e discursos que deslegitimam e ojerizam pessoas trans*; violência física.
Mais exemplos no tópico Terminologia, mais abaixo.
2) Direitos reprodutivos para todxs
Vejam que atualmente o debate sobre direitos reprodutivos não engloba homens trans*. Em parte porque a maioria (percebida) de agentes interessadxs ainda são mulheres cisgêneras e parte pela reprodução cissexista (inclusive por feministas) de que homens não engravidam. Mesmo que saibamos que sujeitos que não possuem útero e são designados como homens/se identificam como homens não tenham a capacidade de gestação, quando excluímos todos os homens desse fenômeno, acabamos por reforçar a ideia de que engravidar é algo somente “feminino” ou inerente à mulher (cis). Dessa forma, caímos novamente na biologia como destino que determina os gêneros: mulheres engravidam e homens não.
Muito embora eu possa entender que a ampla maioria das pessoas interessadas na questão do aborto sejam mulheres cisgêneras, não é novidade homens trans* optarem por engravidar e/ou tendo que lançar mão de abortos (por vezes também clandestinos). Por isso, procurar formas de aborto seguro e/ou gestação segura para homens trans* e estimular a ideia de que a gestação não é algo “feminino” ou exclusivo da mulher cis é um dos objetivos do transfeminismo.
Além disso ainda poderíamos lembrar que em muitos países a esterilização forçada de mulheres trans* é uma grande violência,retira a agência de mulheres trans* no que concerne direitos reprodutivos e isso também é uma pauta a ser considerada.
3) Agência
A agência é um dos elementos principais do transfeminismo, pois a literatura médica e antropológica ao longo das décadas e até hoje considera pessoas trans* como sujeitos sem agência, sem poder de decisão, pois “não compreendem” sua “condição”. Os discursos psiquiatrizadores e patologizadores irão retirar qualquer agência de pessoas trans*, com argumentos que ora utilizam a hormonização (Pessoas trans* tem suas respostas/ações alteradas pela atuação hormonal no corpo, logo não tem capacidade de agência), ora utilizam condição psiquiátrica (pessoas trans* possuem um transtorno mental que as impede de decidir por si, a medicina tem o poder e “conhecimento” para tal, decidiremos por elxs).
Dessa forma, a agência é essencial para retirar essas pessoas do poder médico que as condiciona a um documento oficial pseudo-cientifico e estigmatizador (o DSM), e para que essas pessoas possam vivenciar sua(s) identidade(s) de forma plena. Notem que dar agência a pessoas trans* não significa o completo fim de um procedimento, pelo contrário, pessoas trans* precisam de um atendimento médico seguro – mas que não condicione suas identidades/experiências a “transtornos” ou afins, obrigando-as a um aval médico para existirem no campo político/social ou mesmo jurídico.
4) Desconstrução das identidades binárias
O transfeminismo respeita as pessoas trans* que desejam permanecer no binário de gênero mulher/homem pois trata-se de uma identidade válida e como eu disse no tópico anterior, devemos dar agência para que decidam como desejam viver – da forma mais confortável possível consigo mesmas.
Porém, notamos que as identidades não binárias são bastante vilificadas dentro da sociedade no geral e mesmo dentro do movimento trans*. Não é incomum deslegitimarem Léo Áquila, por ex., por ter dito publicamente que “se sentia um menino que gosta de se vestir de menina”, ou mesmo Laerte/Sônia que prefere não se definir. Assim, pessoas que não se sentem confortáveis nem “de um lado” nem “de outro” são bem vindas e estimuladas, uma vez que esse binário de gênero é uma construção muitas vezes opressiva.
5) Corpo-positividade e/ou empoderamento
Corpo-positividade é um elemento importante também, pois atualmente pessoas trans* sofrem com a estigmatização de seus corpos, nas esferas mais “brandas” como ojerização de seus genitais e/ou corpos dentro de uma perspectiva biológico-cisgênera (mulher-vagina/homem-pênis), até as mais imediatas e violentas como a execução de travestis.     
Esse pensamento binarista dos corpos também é prejudicial na auto-aceitação/empoderamento trans*. Muitas pessoas trans* – e nesse momento posso citar minha própria experiência – são levadas de forma “passiva” (ideologicamente) a acreditar que suas vidas serão melhores após a CRS, ou almejam a cirurgia principalmente por um bem estar social e jurídico (mudança dos documentos). No entanto, criticamos que esse “bem estar” só existe para aquelas que conseguem “passar” como cisgêneras e além disso se existe um “bem estar” ele só existe porque nos condicionamos a norma.
Vejam, não cabe aqui criticar decisões pessoais, mas sim evidenciar um sistema médico-juridico que obriga pessoas trans* a passarem por todos os procedimentos exigidos para obtenção de humanidade (ou seja, existência político-social). Além disso, deixamos aberto as possibilidades de utilizar hormônios ou não, realizar cirurgia ou não, pois não são as modificações corporais que tornarão qualquer pessoa trans* em trans*, e sim a auto-identificação.
Por fim, o estímulo ao empoderamento de seus genitais – como quiserem nomeá-los – e de quaisquer parte de seus corpos, inclusive também do livre exercício de sua(s) sexualidade(s) como veremos abaixo.
6) Da(s) sexualidade(s) das pessoas trans*
De acordo com o DSM, as pessoas trans* “verdadeiras” são assexuadas (sic) e não possuem desejos com seus genitais, almejando só ter relações sexuais após a realização da CRS. Muito embora isso ocorra – principalmente pela construção e reforço da noção de disforia* – sabemos que existem muitas pessoas trans* que se sentem confortáveis em exercer sua sexualidade. O transfeminismo estimula esse exercício para a plena integração social (e sexual) das pessoas trans*, afinal, temos desejos e queremos ser desejadxs, somos homo, bi, hetero, pan, e afins.
Nossa sexualidade existe e não pode ser anulada por qualquer discurso.
7) Terminologia
A terminologia se revelou um ponto importante também, principalmente porque víamos nos termos utilizados previamente um reforço essencialista/biologizante das identidades trans*, assim como também víamos a militância gay invisibilizar crimes transfóbicos chamando-os de homofóbicos.
Das falhas do transfeminismo
O transfeminismo atualmente incorre em muitas das mesmas falhas feministas, principalmente no que concerne raça/classe. No Brasil praticamente não existe movimento e o pouco que tem é classista e racista por não incluir um discurso que visibiliza mulheres trans* negras ou pessoas trans* pobres. Além disso, grande parte do material ainda encontra-se em língua inglesa e a maioria dos termos também ainda estão em inglês. Existe pouco material traduzido e/ou original em língua portuguesa. O Transfeminismo estadunidense inclui, porém, as pessoas dis/non-abled ["deficientes"] em seus discursos.
Conclusão
O Transfeminismo é um movimento novo no geral e novíssimo no Brasil, se é que podemos dizer que existe um movimento no Brasil. Sua proposta inclui desconstrução dos modelos binário de gênero, empoderamento e agência das pessoas trans* no geral, combate à violência cissexista/transfóbica, livre exercício de sua(s) sexualidade(s), direitos reprodutivos inclusivos e terminologia anti-essencialista/biologizante.
Por fim, tentei ser o mais breve possível, mesmo assim a postagem ficou grande – e obviamente não englobou tudo o que se poderia argumentar sobre transfeminismo. Espero ter dado ao menos o pontapé inicial para começarmos a discutir sobre transfeminismo.

Divulgado pelo site Transfeminismo, em 01/10/2012.

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