Ilustração: Carol Rossetti |
Já abordamos aqui o termo transgeneridade. Agora trazemos as raízes históricas
do transfeminismo, no qual são pautadas as lutas por direitos das pessoas
trans* e a desconstrução binária do gênero. Deste modo, discutir sobre questões
trans* é muito mais falar em identidade de gênero do que em sexualidade. Temos,
então, o transfeminismo: mas, afinal, por que houve a necessidade deste
empoderamento? (Carolina Ferreira)
Por Hailey Kaas
Introdução Geral
O que é transfeminismo? Como surgiu? O que o difere das correntes atuais
do feminismo?
Pode-se dizer que o transfeminismo é uma corrente do feminismo
tradicional, porém divergem em alguns pontos, como veremos.
Certamente, o transfeminismo bebeu dos primeiros movimentos feministas e
dos conceitos feministas em si. Argumenta-se que tenha surgido no meio da
segunda onda feminista, em forma de crítica e de reformulação do feminismo da
época para a inclusão de pessoas trans* dentro da agenda feminista. Por isso, a
segunda onda feminista foi combatida pelo transfeminismo e por novas correntes
feministas (terceira onda) no que diz respeito a essencialização e biologização
do corpo “feminino”.
Muito embora a terceira onda do feminismo tenha utilizado um discurso
anti-essencialista e anti-biologicista para desbancar a ciência machista que
tentava (tenta) comprovar machismo através de estudos altamente duvidosos e
ideológicos, a compreensão transfeminista é de que o feminismo falhou nessa
luta quando a questão trans* é contextualizada. Muito embora muitas correntes
reproduzam com frequência a célebre frase da Simone de Beauvoir, “Ninguém nasce
mulher, torna-se mulher” – já desconstruindo a ideia da biologia como destino –
resistem em aceitar mulheres trans* como “verdadeiras” mulheres, ou mesmo
quando aceitam, não visibilizam.
O mito da mulher universal foi severamente criticado por Judith Butler
no famoso livro “Problemas de Gênero – Feminismo e subversão da identidade”,
onde argumenta que a pretensão feminista de haver uma mulher universal que pode
ser representada, corre o risco de fracassar. Haraway também critica o mesmo em
seu livro Manifesto Ciborgue.
Isso ocorreu porque o feminismo de segunda onda reforçavam a ideia de
uma representação universal da mulher, afetada igualmente pelo patriarcado.
Nessa lógica todas as mulheres estariam ligadas de alguma forma por um fator
comum: sofrerem o patriarcado igualmente.
A terceira onda feminista tentou repensar essa lógica inserindo
elementos da teoria queer, afrofeminismo (focando no racismo existente dentro
do que se chamou de feminismo branco), teorias pós-coloniais e questionamentos
do binário de gênero em si. No entanto, mesmo vendo o esforço de algumas
correntes em inserir esses elementos na luta feminista, teve/tem pouco efeito na prática.
Feminismo Radical
Na década de 70-80 surgiu um forte sentimento anti-trans impulsionado
pelo famoso livro de Janice Raymond, intitulado “The Transsexual Empire” (O
Império Transexual), onde na mesma linha de livros que argumentam existir uma
“ditadura gay”, Raymond alerta sobre o “perigo” do patriarcado adentrar o
feminismo na figura de mulheres trans*. Ela também reproduz todo tipo de clichê
transfóbico (mulheres trans* não são mulheres de verdade; são homens se
fantasiando/querendo capturar o “feminino”; são estupradoras em potencial;
etc.). Esse sentimento/corrente feminista é nomeado hoje como “radical
feminism” ou radfem, e é severamente combatido pelo transfeminismo e por
pessoas trans* no geral, pois são inúmeros os episódios transfóbicos envolvendo
feminismo radical (confira aqui na parte “criticism”, ou aqui na parte “cissexism in radical
feminism”).
Teóricxs e Ativistas Transfeministas
As vozes proeminentes do transfeminismo incluíram/incluem a famosa Sandy
Stone, que escreveu um livro satirizando e criticando Raymond, chamado “The
Empire strikes back” (O Império contra-ataca). Ela, inclusive, foi uma das
pessoas trans* cujo livro de Raymond cita de forma pejorativa/deslegitimadora.
Além disso temos também Sylvia Rivera, ativista do Stonewall e fundadora do
grupo Street Transvestite Action Revolutionaries. Kate Bornstein, importantíssima com vários livros ao longo das décadas
de 80 e 90 (e até hoje). Inclui também pessoas mais recentes como Julia Serano e Emi Koyama com seu The Transfeminist Manifesto, de 2001; Patrick Califa que
utilizou a palavra transfeminismo pela primeira vez impressa em 1997; e Robert
Hill, embora eu tenha ressalvas com o último por em suas pesquisas utilizar
vários termos pejorativos (como tranny [traveco/trava]) dessa forma não
compreendendo o objetivo transfeminista, a meu ver.
Transfeminismo
Após contextualizar o surgimento e xs teóricxs/ativistas de destaque,
resta saber o que quer o transfeminismo. Como exposto acima, o feminismo não
deu conta de incluir pessoas trans* em suas agendas, ora por pura
ignorância/falta de visibilidade, ora por pura transfobia. O movimento trans* –
as pessoas trans* – não estão livres do machismo, assim como as mulheres
cisgêneras (não trans*) também não estão. Sabemos que é comum encontrarmos
mulheres cis reproduzindo discursos slut-shaming [que condenam a
sexualidade das mulheres] ou mesmo retrô-sexismo (piadas de fogão/louça e
afins). Também não é incomum vermos falta de credibilidade/solidariedade mesmo
entre as mulheres em casos de estupro. Por isso o feminismo é importante,
porque como argumenta-se, se todas as mulheres tivessem consciência de sua
opressão não haveria necessidade do feminismo.
Assim também é na esfera trans*. As pessoas trans* irão constantemente
reproduzir valores machistas e ideais/padrões de beleza geralmente quando
transicionam. Irão julgar as aparências de acordo com o padrão de feminilidade
ou masculinidade imposto pelo projeto machista de gênero existente e irão
reproduzir valores cissexistas dentro da comunidade trans*(por ex. se você não
fez a CRS ainda você não é mulher “por completo”; se não fez mastectomia não é
homem “de verdade” etc.).
Assim como o feminismo de terceira onda, o transfeminismo se pautou (e
ainda se pauta) na teoria queer e estudos pós-coloniais.
Abaixo seguem os principais pontos compilados por mim, no que diz
respeito a agenda transfeminista.
1) Combate à violência cissexista/transfóbica
Combate à violência discursiva: O linguajar cissexista reproduzido e
naturalizado é nocivo às pessoas trans*, pois reforça certos estereótipos
negativos e também a noção patologizante/psiquiatrizante (linguagem médica, por
exemplo).
Combate à violência físico-verbal: reflexo da violência discursiva
institucionalizada – palavras e discursos que deslegitimam e ojerizam pessoas
trans*; violência física.
Mais exemplos no tópico Terminologia, mais abaixo.
2) Direitos reprodutivos para todxs
Vejam que atualmente o debate sobre direitos reprodutivos não engloba
homens trans*. Em parte porque a maioria (percebida) de agentes interessadxs
ainda são mulheres cisgêneras e parte pela reprodução cissexista (inclusive por
feministas) de que homens não engravidam. Mesmo que saibamos que sujeitos que
não possuem útero e são designados como homens/se identificam como homens não
tenham a capacidade de gestação, quando excluímos todos os homens desse
fenômeno, acabamos por reforçar a ideia de que engravidar é algo somente
“feminino” ou inerente à mulher (cis). Dessa forma, caímos novamente na
biologia como destino que determina os gêneros: mulheres engravidam e homens
não.
Muito embora eu possa entender que a ampla maioria das pessoas
interessadas na questão do aborto sejam mulheres cisgêneras, não é novidade
homens trans* optarem por engravidar e/ou tendo que lançar mão de abortos (por
vezes também clandestinos). Por isso, procurar formas de aborto seguro e/ou
gestação segura para homens trans* e estimular a ideia de que a gestação não é
algo “feminino” ou exclusivo da mulher cis é um dos objetivos do
transfeminismo.
Além disso ainda poderíamos lembrar que em muitos países a esterilização
forçada de mulheres trans* é uma grande violência,retira a agência de mulheres
trans* no que concerne direitos reprodutivos e isso também é uma pauta a ser
considerada.
3) Agência
A agência é um dos elementos principais do transfeminismo, pois a
literatura médica e antropológica ao longo das décadas e até hoje considera
pessoas trans* como sujeitos sem agência, sem poder de decisão, pois “não
compreendem” sua “condição”. Os discursos psiquiatrizadores e patologizadores
irão retirar qualquer agência de pessoas trans*, com argumentos que ora
utilizam a hormonização (Pessoas trans* tem suas respostas/ações alteradas pela
atuação hormonal no corpo, logo não tem capacidade de agência), ora utilizam
condição psiquiátrica (pessoas trans* possuem um transtorno mental que as
impede de decidir por si, a medicina tem o poder e “conhecimento” para tal,
decidiremos por elxs).
Dessa forma, a agência é essencial para retirar essas pessoas do poder
médico que as condiciona a um documento oficial pseudo-cientifico e
estigmatizador (o DSM), e para que essas pessoas possam vivenciar sua(s)
identidade(s) de forma plena. Notem que dar agência a pessoas trans* não
significa o completo fim de um procedimento, pelo contrário, pessoas trans*
precisam de um atendimento médico seguro – mas que não condicione suas
identidades/experiências a “transtornos” ou afins, obrigando-as a um aval
médico para existirem no campo político/social ou mesmo jurídico.
4) Desconstrução das identidades binárias
O transfeminismo respeita as pessoas trans* que desejam permanecer no
binário de gênero mulher/homem pois trata-se de uma identidade válida e como eu
disse no tópico anterior, devemos dar agência para que decidam como desejam
viver – da forma mais confortável possível consigo mesmas.
Porém, notamos que as identidades não binárias são bastante vilificadas
dentro da sociedade no geral e mesmo dentro do movimento trans*. Não é incomum
deslegitimarem Léo Áquila, por ex., por ter dito publicamente que “se sentia um
menino que gosta de se vestir de menina”, ou mesmo Laerte/Sônia que prefere não
se definir. Assim, pessoas que não se sentem confortáveis nem “de um lado” nem
“de outro” são bem vindas e estimuladas, uma vez que esse binário de gênero é
uma construção muitas vezes opressiva.
5) Corpo-positividade e/ou empoderamento
Corpo-positividade é um elemento importante também, pois atualmente
pessoas trans* sofrem com a estigmatização de seus corpos, nas esferas mais
“brandas” como ojerização de seus genitais e/ou corpos dentro de uma
perspectiva biológico-cisgênera (mulher-vagina/homem-pênis), até as mais
imediatas e violentas como a execução de travestis.
Esse pensamento binarista dos corpos também é prejudicial na
auto-aceitação/empoderamento trans*. Muitas pessoas trans* – e nesse momento
posso citar minha própria experiência – são levadas de forma “passiva”
(ideologicamente) a acreditar que suas vidas serão melhores após a CRS, ou
almejam a cirurgia principalmente por um bem estar social e jurídico (mudança
dos documentos). No entanto, criticamos que esse “bem estar” só existe para
aquelas que conseguem “passar” como cisgêneras e além disso se existe um “bem
estar” ele só existe porque nos condicionamos a norma.
Vejam, não cabe aqui criticar decisões pessoais, mas sim evidenciar um
sistema médico-juridico que obriga pessoas trans* a passarem por todos os
procedimentos exigidos para obtenção de humanidade (ou seja, existência
político-social). Além disso, deixamos aberto as possibilidades de utilizar
hormônios ou não, realizar cirurgia ou não, pois não são as modificações
corporais que tornarão qualquer pessoa trans* em trans*, e sim a
auto-identificação.
Por fim, o estímulo ao empoderamento de seus genitais – como quiserem
nomeá-los – e de quaisquer parte de seus corpos, inclusive também do livre
exercício de sua(s) sexualidade(s) como veremos abaixo.
6) Da(s) sexualidade(s) das pessoas trans*
De acordo com o DSM, as pessoas trans* “verdadeiras” são assexuadas
(sic) e não possuem desejos com seus genitais, almejando só ter relações
sexuais após a realização da CRS. Muito embora isso ocorra – principalmente
pela construção e reforço da noção de disforia* – sabemos que existem muitas
pessoas trans* que se sentem confortáveis em exercer sua sexualidade. O
transfeminismo estimula esse exercício para a plena integração social (e
sexual) das pessoas trans*, afinal, temos desejos e queremos ser desejadxs,
somos homo, bi, hetero, pan, e afins.
Nossa sexualidade existe e não pode ser anulada por qualquer discurso.
7) Terminologia
A terminologia se revelou um ponto importante também, principalmente
porque víamos nos termos utilizados previamente um reforço
essencialista/biologizante das identidades trans*, assim como também víamos a
militância gay invisibilizar crimes transfóbicos chamando-os de homofóbicos.
Das falhas do transfeminismo
O transfeminismo atualmente incorre em muitas das mesmas falhas
feministas, principalmente no que concerne raça/classe. No Brasil praticamente
não existe movimento e o pouco que tem é classista e racista por não incluir um
discurso que visibiliza mulheres trans* negras ou pessoas trans* pobres. Além
disso, grande parte do material ainda encontra-se em língua inglesa e a maioria
dos termos também ainda estão em inglês. Existe pouco material traduzido e/ou
original em língua portuguesa. O Transfeminismo estadunidense inclui, porém, as
pessoas dis/non-abled ["deficientes"] em seus discursos.
Conclusão
O Transfeminismo é um movimento novo no geral e novíssimo no Brasil, se
é que podemos dizer que existe um movimento no Brasil. Sua proposta inclui
desconstrução dos modelos binário de gênero, empoderamento e agência das
pessoas trans* no geral, combate à violência cissexista/transfóbica, livre
exercício de sua(s) sexualidade(s), direitos reprodutivos inclusivos e
terminologia anti-essencialista/biologizante.
Por fim, tentei ser o mais breve possível, mesmo assim a postagem ficou
grande – e obviamente não englobou tudo o que se poderia argumentar sobre
transfeminismo. Espero ter dado ao menos o pontapé inicial para começarmos a
discutir sobre transfeminismo.
Divulgado pelo site Transfeminismo, em
01/10/2012.
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