Jaqueline Conceição teve o seu artigo
sobre a questão de gênero no universo do funk selecionado pela Universidade de
Columbia. (Foto: Arquivo pessoal)
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Entrevista realizada pela Revista
Fórum Semanal (http://revistaforum.com.br/digital/) com a pedagoga Jaqueline Conceição, que escreveu o artigo “Só
Mina Cruel – Algumas Reflexões Sobre Gênero e Cultura Afirmativa no Universo
Juvenil do Funk”, que trata da questão do feminismo e da mulher no universo do funk.
(Taisa Vieira)
(Taisa Vieira)
Quais
são as intersecções possíveis entre feminismo, funk e empoderamento da mulher?
A pedagoga Jaqueline Conceição se debruçou sobre essa questão em artigo que
será apresentado na Universidade de Columbia
Por
Marcelo Hailer
O nome de Jaqueline Conceição circulou
nesta semana nos meios de comunicação por dois motivos: primeiro, pela campanha
online que ela lançou para angariar fundos para uma viagem aos Estados Unidos,
pois o seu artigo “Só Mina Cruel – Algumas Reflexões Sobre Gênero e Cultura
Afirmativa no Universo Juvenil do Funk”, que trata da questão de gênero no
universo do funk, foi selecionado para ser apresentado em um congresso da
Universidade de Columbia, uma referência no mundo. O segundo motivo é que a
campanha chegou na cantora de funk Valesca Popozuda, que gostou do projeto e
resolveu ajudar Conceição a bancar a sua viagem para a terra do Tio Sam.
Conceição resolveu tratar de um tema que é
polêmico nos debates feministas, a questão da mulher e do feminismo no meio do
funk. Quando cantoras vociferam frases como “a porra da buceta é minha”, estão
praticando autonomia sob seus corpos? “Na minha interpretação é isso, dizer que
a buceta é dela é mais do que só dizer ‘que ela dá pra quem ela quer’ e o corpo
como nossa unidade, como sujeito no mundo é a coisa mais importante, o que
gente tem de mais de imediato é o nosso corpo”, analisa Conceição.
A respeito da polêmica com setores que não
enxergam nuances feministas nas performances das cantoras do funk, Conceição
não se furta do debate e levanta um questionamento interessante. “Pra mim,
sempre que pensei em feminismo, seria algo para garantir a minha liberdade, mas
para isso tenho que me livrar do trabalho doméstico e o que a maioria das
feministas faz? Pagam outras mulheres, normalmente negras, para fazer o
trabalho doméstico que elas não fazem. Então, de certa forma, a liberdade dela
não é plena, a liberdade dela está calcada em cima do trabalho de alguém”,
comenta a pedagoga.
Revista Fórum –
De onde surgiu a ideia de escrever o artigo “Só Mina Cruel”?
Jaqueline Conceição -
Escrevi esse artigo pra publicá-lo num evento científico que aconteceu em
Marília (SP) no ano passado. Eu queria discutir a questão do feminismo, mas não
queria ficar presa à questão da academia. E, na rua de casa, tinha muito
pancadão e aquilo me chamava a atenção, foi daí que surgiu a ideia de fazer
esse artigo.
Fórum –
De que maneira você relaciona a questão do funk e do feminismo?
Conceição –
O funk mobiliza as meninas a pensarem em uma apropriação maior do seu corpo e
isso está muito próximo daquilo que as feministas vêm discutindo: o direito ao
corpo, ao espaço, ao prazer, da valorização da mulher enquanto sujeito
histórico. E na medida em que as meninas que cantam o funk vão protagonizando
cada vez mais o cenário cultural, vão também se apropriando de um contexto
histórico.
Fórum –
O funk é um espaço predominantemente masculino. Acredita que com a ascensão de
cantoras e grupos femininos o espaço do funk se torna mais feminino?
Conceição –
Na verdade, acho há uma disputa, mas não uma disputa no sentido formal, e sim
dentro das relações sociais, que é um campo de extensão, e isso como em
qualquer outro campo social. Na medida em que as mulheres vão se construindo
enquanto mediadoras, produtoras, consumidoras e cantoras de funk, vão
disputando com os homens esse espaço que está posto.
Fórum –
Dá pra falar de um empoderamento da mulher no funk?
Conceição –
Dá pra pensar em um empoderamento da mulher a partir do funk, inclusive porque
o funk abre um debate. Por exemplo, eu estava na sala de aula com os alunos
discutindo sexualidade e nós estávamos falando da questão do colo do útero, uma
coisa muito pontual e informativa de escola. E um menino falou para uma menina:
‘mas você não se masturba?’, e a menina fez uma cara de desesperada e ela
‘não’, e o menino: ‘mas você tem que se tocar… Assim, pega o espelho, coloca lá
e olha’. Na minha geração isso jamais aconteceria e pra mim isso é o advento do
funk, ele traz isso à tona e para os jovens que estão em formação é inaceitável
que uma mulher não sinta prazer. Isso o funk traz, essa coisa da masturbação, e
ele traz um debate que, talvez, na minha geração a gente não tinha o acesso que
eles têm hoje.
Fórum –
Quando pegamos a frase “a porra da buceta é minha”, podemos dizer que são as
meninas dizendo: o corpo é meu e faço o que eu quero?
Conceição –
Na minha interpretação é isso, dizer que a buceta é dela é mais do que só dizer
‘que ela dá pra quem ela quer’ e o corpo como nossa unidade, como sujeito no
mundo, é coisa mais importante, o que gente tem de mais de imediato é o nosso
corpo. Para uma mulher, numa sociedade como a brasileira que controla o
processo reprodutivo, que controla o padrão de como ela deve se vestir, falar e
como deve ser, legitimar a posse do corpo e dizer que é dela, é um
empoderamento sim.
Fórum –
Temos alguns setores feministas que discordam dessa tese. O que pensa disso?
Conceição –
O funk ele é o que ele é. Ele nem só liberta, e nem só aprisiona. Como qualquer
produto cultural da sociedade em que a gente vive, uma sociedade massificada,
consumidora, onde a própria cultura é mediada pela indústria, o funk é um
produto que foi criado e que está sendo consumido, hoje, em grande escala e que
ele pode tanto libertar quanto aprisionar.
Por
exemplo: pra mim, sempre que pensei em feminismo, seria algo para garantir a
minha liberdade, mas para isso tenho que me livrar do trabalho doméstico e o
que a maioria das feministas faz? Pagam outras mulheres, normalmente negras,
para fazer o trabalho doméstico que elas não fazem. Então, de certa forma, a
liberdade dela não é plena, a liberdade dela está calcada em cima do trabalho
de alguém. Mesmo sendo uma relação de trabalho, não deixa de ser um trabalho
desvalorizado, um trabalho que não é reconhecido e que as próprias feministas
desconsideram, que é o trabalho doméstico. É a mesma coisa o funk. Ele traz uma
liberdade por que possibilita uma discussão maior sobre a questão do corpo e de
lidar com o papel da mulher, mas, como ele está dentro de uma lógica machista,
acaba reproduzindo o machismo. O mesmo ocorre com o trabalho doméstico, numa
sociedade machista, cabe à mulher fazer o trabalho doméstico. É uma tensão que
está posta.
Fórum –
Acredita que a vestimenta das cantoras de funk representa o desejo da hierarquia
masculina?
Conceição –
Totalmente, reforça. Aí é que está o xis da questão. Costumo dizer que o desejo
é socialmente construído, a própria concepção do que é “prazer” para nós,
mulheres, muito provavelmente foi construído e mediado pelos homens. Quando uma
mulher diz que tem vários parceiros, ou que gosta de levar tapa na cara, ou
gosta de chupar isso e aquilo, o que a gente tem que perguntar é: ela faz por
que é legítimo pra ela ou está reproduzindo aquilo que foi ensinado sobre como
deve ser comportar?
Mas
quero fazer uma observação sobre algo que sempre me pego pensando. Se por um
lado a gente tem um boom de informação pra juventude e eles têm acesso a uma
série de coisas, por outro lado a questão da sexualidade ainda é um tabu. Nem a
família nem a escola discutem como tem que ser discutido. Essa geração de
jovens que consome funk e que tem de 15 a 20 anos, a formação sexual deles
provavelmente foi mediada pela pornografia, e a pornografia é repleta de
violência. A forma como a pornografia concebe a relação sexual e a sexualidade
é violenta.
Muito
provavelmente nas músicas eles reproduzem essa formação que tiveram, mediada
pela violência.
Fórum –
Agora, tem uma questão que é a seguinte: quando um homem canta que “comeu” de
várias maneiras, tudo bem. Mas, se a mulher canta que deu pra vários, causa um
choque. Isso está inserido num machismo cultural histórico, não?
Conceição –
Quando fui fazer a pesquisa entrei justamente na questão de gênero. Não tinha
segurança pra dizer que era só machismo, ou só libertário. Tinha a dúvida se
não estava no meio dos dois caminhos e no final cheguei à conclusão de que é as
duas coisas, às vezes ao mesmo tempo, e às vezes em oposição.
Tem
uma música do Catra que ele canta “mama eu”, alguma coisa relacionada ao sexo
oral, e na música ele incentiva as meninas a fazerem o sexo oral e a receberem
o sexo oral. Durante um show, as meninas cantavam num coro, num frenesi. Em uma
sociedade como a nossa, que vive sob um tabu sexual, estar na companhia de
outros jovens e poder expressar a sua sexualidade sem que ninguém fique falando
pra você, é de fato algo libertador. E como eu disse no exemplo na sala de
aula, isso abre precedente para outras coisas, para uma outra geração de homem
que vai ter outro olhar sobre o prazer da mulher. Pode ser que ele não seja um
olhar emancipador, mas já é um olhar para a emancipação.
Jesus Cristo Esta Voltando!!!
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