quarta-feira, 20 de agosto de 2014

“A buceta é minha”: o corpo como sujeito no mundo

Jaqueline Conceição teve o seu artigo sobre a questão de gênero no universo do funk selecionado pela Universidade de Columbia. (Foto: Arquivo pessoal)

Entrevista realizada pela Revista Fórum Semanal (http://revistaforum.com.br/digital/) com a pedagoga Jaqueline Conceição, que escreveu o artigo “Só Mina Cruel – Algumas Reflexões Sobre Gênero e Cultura Afirmativa no Universo Juvenil do Funk”, que trata da questão do feminismo e da mulher no universo do funk. 
(Taisa Vieira)

Quais são as intersecções possíveis entre feminismo, funk e empoderamento da mulher? A pedagoga Jaqueline Conceição se debruçou sobre essa questão em artigo que será apresentado na Universidade de Columbia

Por Marcelo Hailer
O nome de Jaqueline Conceição circulou nesta semana nos meios de comunicação por dois motivos: primeiro, pela campanha online que ela lançou para angariar fundos para uma viagem aos Estados Unidos, pois o seu artigo “Só Mina Cruel – Algumas Reflexões Sobre Gênero e Cultura Afirmativa no Universo Juvenil do Funk”, que trata da questão de gênero no universo do funk, foi selecionado para ser apresentado em um congresso da Universidade de Columbia, uma referência no mundo. O segundo motivo é que a campanha chegou na cantora de funk Valesca Popozuda, que gostou do projeto e resolveu ajudar Conceição a bancar a sua viagem para a terra do Tio Sam.

Conceição resolveu tratar de um tema que é polêmico nos debates feministas, a questão da mulher e do feminismo no meio do funk. Quando cantoras vociferam frases como “a porra da buceta é minha”, estão praticando autonomia sob seus corpos? “Na minha interpretação é isso, dizer que a buceta é dela é mais do que só dizer ‘que ela dá pra quem ela quer’ e o corpo como nossa unidade, como sujeito no mundo é a coisa mais importante, o que gente tem de mais de imediato é o nosso corpo”, analisa Conceição.
A respeito da polêmica com setores que não enxergam nuances feministas nas performances das cantoras do funk, Conceição não se furta do debate e levanta um questionamento interessante. “Pra mim, sempre que pensei em feminismo, seria algo para garantir a minha liberdade, mas para isso tenho que me livrar do trabalho doméstico e o que a maioria das feministas faz? Pagam outras mulheres, normalmente negras, para fazer o trabalho doméstico que elas não fazem. Então, de certa forma, a liberdade dela não é plena, a liberdade dela está calcada em cima do trabalho de alguém”, comenta a pedagoga.
Revista Fórum – De onde surgiu a ideia de escrever o artigo “Só Mina Cruel”?
Jaqueline Conceição - Escrevi esse artigo pra publicá-lo num evento científico que aconteceu em Marília (SP) no ano passado. Eu queria discutir a questão do feminismo, mas não queria ficar presa à questão da academia. E, na rua de casa, tinha muito pancadão e aquilo me chamava a atenção, foi daí que surgiu a ideia de fazer esse artigo.
Fórum – De que maneira você relaciona a questão do funk e do feminismo?
Conceição – O funk mobiliza as meninas a pensarem em uma apropriação maior do seu corpo e isso está muito próximo daquilo que as feministas vêm discutindo: o direito ao corpo, ao espaço, ao prazer, da valorização da mulher enquanto sujeito histórico. E na medida em que as meninas que cantam o funk vão protagonizando cada vez mais o cenário cultural, vão também se apropriando de um contexto histórico.
Fórum – O funk é um espaço predominantemente masculino. Acredita que com a ascensão de cantoras e grupos femininos o espaço do funk se torna mais feminino?
Conceição – Na verdade, acho há uma disputa, mas não uma disputa no sentido formal, e sim dentro das relações sociais, que é um campo de extensão, e isso como em qualquer outro campo social. Na medida em que as mulheres vão se construindo enquanto mediadoras, produtoras, consumidoras e cantoras de funk, vão disputando com os homens esse espaço que está posto.
Fórum – Dá pra falar de um empoderamento da mulher no funk?
Conceição – Dá pra pensar em um empoderamento da mulher a partir do funk, inclusive porque o funk abre um debate. Por exemplo, eu estava na sala de aula com os alunos discutindo sexualidade e nós estávamos falando da questão do colo do útero, uma coisa muito pontual e informativa de escola. E um menino falou para uma menina: ‘mas você não se masturba?’, e a menina fez uma cara de desesperada e ela ‘não’, e o menino: ‘mas você tem que se tocar… Assim, pega o espelho, coloca lá e olha’. Na minha geração isso jamais aconteceria e pra mim isso é o advento do funk, ele traz isso à tona e para os jovens que estão em formação é inaceitável que uma mulher não sinta prazer. Isso o funk traz, essa coisa da masturbação, e ele traz um debate que, talvez, na minha geração a gente não tinha o acesso que eles têm hoje.
Fórum – Quando pegamos a frase “a porra da buceta é minha”, podemos dizer que são as meninas dizendo: o corpo é meu e faço o que eu quero?
Conceição – Na minha interpretação é isso, dizer que a buceta é dela é mais do que só dizer ‘que ela dá pra quem ela quer’ e o corpo como nossa unidade, como sujeito no mundo, é coisa mais importante, o que gente tem de mais de imediato é o nosso corpo. Para uma mulher, numa sociedade como a brasileira que controla o processo reprodutivo, que controla o padrão de como ela deve se vestir, falar e como deve ser, legitimar a posse do corpo e dizer que é dela, é um empoderamento sim.
Fórum – Temos alguns setores feministas que discordam dessa tese. O que pensa disso?
Conceição – O funk ele é o que ele é. Ele nem só liberta, e nem só aprisiona. Como qualquer produto cultural da sociedade em que a gente vive, uma sociedade massificada, consumidora, onde a própria cultura é mediada pela indústria, o funk é um produto que foi criado e que está sendo consumido, hoje, em grande escala e que ele pode tanto libertar quanto aprisionar.
Por exemplo: pra mim, sempre que pensei em feminismo, seria algo para garantir a minha liberdade, mas para isso tenho que me livrar do trabalho doméstico e o que a maioria das feministas faz? Pagam outras mulheres, normalmente negras, para fazer o trabalho doméstico que elas não fazem. Então, de certa forma, a liberdade dela não é plena, a liberdade dela está calcada em cima do trabalho de alguém. Mesmo sendo uma relação de trabalho, não deixa de ser um trabalho desvalorizado, um trabalho que não é reconhecido e que as próprias feministas desconsideram, que é o trabalho doméstico. É a mesma coisa o funk. Ele traz uma liberdade por que possibilita uma discussão maior sobre a questão do corpo e de lidar com o papel da mulher, mas, como ele está dentro de uma lógica machista, acaba reproduzindo o machismo. O mesmo ocorre com o trabalho doméstico, numa sociedade machista, cabe à mulher fazer o trabalho doméstico. É uma tensão que está posta.
Fórum – Acredita que a vestimenta das cantoras de funk representa o desejo da hierarquia masculina?
Conceição – Totalmente, reforça. Aí é que está o xis da questão. Costumo dizer que o desejo é socialmente construído, a própria concepção do que é “prazer” para nós, mulheres, muito provavelmente foi construído e mediado pelos homens. Quando uma mulher diz que tem vários parceiros, ou que gosta de levar tapa na cara, ou gosta de chupar isso e aquilo, o que a gente tem que perguntar é: ela faz por que é legítimo pra ela ou está reproduzindo aquilo que foi ensinado sobre como deve ser comportar?
Mas quero fazer uma observação sobre algo que sempre me pego pensando. Se por um lado a gente tem um boom de informação pra juventude e eles têm acesso a uma série de coisas, por outro lado a questão da sexualidade ainda é um tabu. Nem a família nem a escola discutem como tem que ser discutido. Essa geração de jovens que consome funk e que tem de 15 a 20 anos, a formação sexual deles provavelmente foi mediada pela pornografia, e a pornografia é repleta de violência. A forma como a pornografia concebe a relação sexual e a sexualidade é violenta.
Muito provavelmente nas músicas eles reproduzem essa formação que tiveram, mediada pela violência.
Fórum – Agora, tem uma questão que é a seguinte: quando um homem canta que “comeu” de várias maneiras, tudo bem. Mas, se a mulher canta que deu pra vários, causa um choque. Isso está inserido num machismo cultural histórico, não?
Conceição – Quando fui fazer a pesquisa entrei justamente na questão de gênero. Não tinha segurança pra dizer que era só machismo, ou só libertário. Tinha a dúvida se não estava no meio dos dois caminhos e no final cheguei à conclusão de que é as duas coisas, às vezes ao mesmo tempo, e às vezes em oposição.
Tem uma música do Catra que ele canta “mama eu”, alguma coisa relacionada ao sexo oral, e na música ele incentiva as meninas a fazerem o sexo oral e a receberem o sexo oral. Durante um show, as meninas cantavam num coro, num frenesi. Em uma sociedade como a nossa, que vive sob um tabu sexual, estar na companhia de outros jovens e poder expressar a sua sexualidade sem que ninguém fique falando pra você, é de fato algo libertador. E como eu disse no exemplo na sala de aula, isso abre precedente para outras coisas, para uma outra geração de homem que vai ter outro olhar sobre o prazer da mulher. Pode ser que ele não seja um olhar emancipador, mas já é um olhar para a emancipação.

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