Foto: Ensaios de Gênero |
Texto publicado pelo blog
(http://ensaiosdegenero.wordpress.com/)
em 20/01/2014. Nele, o autor faz uma análise sobre a construção das relações de
gênero no espaço de ensino. (Rodrigo Andrade).
Por Adriano Senkevics
O
recreio é um espaço privilegiado para se estudar as crianças na escola, por
estar mais distante das regras escolares e, portanto, dando mais liberdade para
que as interações infantis aflorem. Assim, o recreio acaba sendo também uma
oportunidade de se observar como as relações de gênero se constroem no espaço
escolar.
Nessa
rede de relações entre meninas e meninos que se expressa no intervalo das
aulas, na qual, de modo geral, se faz menos presente os olhares e normas dos
adultos, configurações das mais variadas são possíveis. O recreio torna-se
palco para construções de masculinidades e feminilidades que fazem jus ao
conceito de gênero: relacionais, múltiplas e associadas ao poder. Seguindo essa
linha, o estudo de Tânia Cruz e Marília Carvalho (2006) procurou tecer uma
etnografia do recreio escolar, descrevendo padrões de interações entre as
crianças e o que eles nos diziam sobre as relações de gênero.
Na
escola que as autoras estudaram, estavam sendo relatados, pela equipe escolar,
casos de “violência” no recreio. Instigadas por tal violência, Tânia Cruz foi a
campo procurando enxergar que violência é essa e como ela seria praticada.
Viu-se que era comum, entre meninos e meninas, interações nas quais se
mesclavam agressividade com elementos lúdicos, visando à aproximação. A essa
forma de se relacionar, elas cunharam a expressão “sociabilidade do conflito”.
(...)
está dada uma separação entre os sexos – diria mais: uma segregação de cunho
sexista – que imputa aos meninos e meninas diferentes lugares, atividades e
objetos na escola (assim como fora dela). Ora, já é consensual entre feministas
e interessados/as em estudos de gênero que o binarismo está dado. Mulheres de
um lado, homens do outro. Nomes, cores, brinquedos, profissões, roupas,
expectativas etc, distintos. Tudo tem que ser diferente porque, afinal, eles
vieram de Marte; elas, de Vênus.
A
segregação sexual, na escola, se expressa por modos peculiares pelos quais
meninos e meninas se aproximam. Simplesmente sentar junto com colegas do sexo
oposto pode ser problemático, sobretudo entre crianças de menor idade – pois,
na chamada “adolescência”, outros elementos entram em jogo na constituição do
“ficar” e do namoro. Mas, entre crianças do Ensino Fundamental I, prepondera a
noção da homossociabilidade, isto é, interações restritas ou preferidas entre
colegas do mesmo sexo.
Assim,
o que Cruz e Carvalho (2006) notaram foi que havia um distanciamento entre os
sexos nos momentos amistosos (nos quais relações positivas eram construídas
entre os pares) e uma aproximação proposital por meio de ações conflituosas,
“que pareciam, muitas vezes, ser a única forma possível de estar juntos” (p.
121). Essa aproximação conflituosa, segundo as autoras, se constitui por três
principais formas: (1) atividades turbulentas (correias, pega-pegas,
perseguições) que polarizam meninos e meninas; (2) episódios de invasão (quando
crianças de um sexo invadiam os espaços e brincadeiras das crianças do sexo
oposto); (3) provocações verbais ou físicas, incluindo os xingamentos
proferidos pelos meninos e, em resposta, os tapas das garotas contra eles.
Quem
nunca foi numa escola primária e viu meninas correndo para bater em meninos? Ou
o grupo dos meninos interferindo negativamente na brincadeira de pular corda
praticada por elas? Ou algumas meninas atravessando o campo de futebol para
atrapalhar o jogo deles? Em suma, são situações rotineiras que apontam para os
limites de interações entre os sexos. Denotam, por um lado, as tais separações
e como se constituem dois universos distintamente caracterizados e até mesmo
polarizados. Por outro lado, apontam para as possibilidades de intersecção. Eles
e elas, afinal, interagem. Mas não de qualquer forma. O conflito – e alguma
dose de agressividade – torna-se constitutivo.
Vale
ressaltar que o caráter agressivo que a interação conflituosa possa apresentar
não é necessariamente violento. Violência, pois, depende de pelo menos três
referenciais: o agente, a vítima e o observador. Naquilo que parece violento
aos nossos olhos (adultos) pode se descortinar outras possibilidades, nas quais
o lúdico predomina. Não que não apontem para problemas amplos da sociedade –
caso contrário, o dito bullying não seria objeto de preocupação. Só que, em
defesa das crianças, os sentidos que preenchem tais atividades talvez sejam
outros, seja para quem agride, seja para quem é agredido.
Violenta
ou não, cabe ainda refletir sobre a configuração dualista que coloca meninas e
meninos em lados opostos. Bem, esse é um dos temas mais complexos dos estudos
de gênero. Barrie Thorne (1993), de quem já falamos outras vezes neste blog, em
sua célebre obra defende que tais conflitos, ainda que lúdicos, reforçam
antagonismo entre os gêneros. E, aqui, a autora se refere tanto às oposições
entre os sexos (meninas e meninos), quanto aos sentidos de gênero
(masculinidades e feminilidades). Portanto, não basta juntar meninas e meninos
em um mesmo espaço ou brincadeira – a chamada coeducação – porque as oposições
podem persistir. A título de exemplo, mesmo juntos, pacificamente, brincando de
casinha, ainda vai existir o papel do pai e da mãe, bem delimitados.
Diluir
essas fronteiras é um esforço constante e a meta última da conhecida teoria
queer. Começa nos modelos, exemplos, padrões. Passa pela escola, mídia,
trabalho, família. Depende de pais, mães, educadores, da sociedade como um
todo. É um processo pelo qual lutamos tanto, um sonho que é tributário do
feminismo, e que enfrenta inúmeras dificuldades. Há, sem dúvida, exemplos para
nos espelharmos. O mais famoso deles é a instituição de Educação Infantil, na
Suécia, chamada Egalia. Lá, as distinções de gênero tendem a ser mínimas: um
pronome neutro se refere às crianças (similar ao “menines”), elas vestem roupas
idênticas, brincam das mesmas brincadeiras. Um paraíso queer, diríamos. Mas,
saiu dali…
Vê-se,
para concluir, que as fronteiras tidas como certas têm efeitos reais nas
interações entre meninas e meninos, discutidas neste texto no âmbito do
recreio. Longe de ser um dado fixo, natural ou essencial, baseia-se numa
referência sexista que se retroalimenta na sociedade. É um lugar comum.
Enfrentar tais constrições é um passo essencial para relações menos
conflituosas e mais igualitárias. Entre crianças ou entre adultos. Na escola ou
fora dela.
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