Foto: site Ensaios de Gênero |
Por Bia Bagagli
Muitas pessoas
perguntam acerca das identidades trans*: qual é a diferença entre travestis e
transexuais? O que significa o * do trans? Levando em consideração que estas
perguntas se referem à significação, acho bastante pertinente atentarmos sobre
alguns conceitos da Semântica da Enunciação para analisarmos não apenas os
sentidos de travestis e transexuais, mas também sobre qual é o estatuto (e
implicações) destes sentidos. Esse texto se trata de uma continuidade com o
texto “Descolonizando os entremeios de Travestis e Transexuais”, no qual eu
abordei como os sentidos de travestis e transexuais são instrumentalizados
pelos discursos médico e jurídico para reproduzir transfobia e então, pensar em
possíveis formas de resistência a essas normatizações; agora pretendo me
aprofundar um pouco mais em questões linguísticas propriamente, como a
enunciação, designação, referência e sentido, conceitos que foram só
tangenciados no texto anterior.
Durante esse
texto, muito embora o termo trans* abranja diversas identidades, estarei
focando especialmente os termos travesti e transexual. Cabe ressaltar também
que, por tratar deste recorte, irei privilegiar o espectro feminino das
identidades trans*, ou seja, pessoas trans* que foram designadas com o sexo
masculino ao nascer. Digo isso pelo fato do recorte travesti/transexual só
operar com estas pessoas, visto que homens trans* e outras pessoas trans* que
performam um espectro masculino de identidades ou não binário (podendo incluir
também o espectro de feminilidade, como bem me apontou Carina Rez Lobos) não
serem designados enquanto travestis, mas apenas como transexuais pelo discurso
médico/jurídico. Este fato pode indicar a possibilidade de um controle menos
rígido operado pelos discursos médicos e jurídicos sobre essas pessoas trans*,
na medida em que as diferenças entre travestis e transexuais são
instrumentalizadas pelos discursos médicos e jurídicos para produção de
abjeções e especificamente transmisoginia; mas como isso ainda não foi
analisado profundamente, digo que se trata ainda de uma hipótese. Mesmo
operando este recorte, acredito que esta análise possa ser útil para se pensar
as transmasculinidades e não binaridades, na medida em que homens trans* e
outras pessoas trans* designadas com o sexo feminino ao nascer que se
identificam com um espectro masculino/não-binário sofrem inúmeras
deslegitimações de suas identidades que são comuns às pessoas trans* de um
espectro feminino.
Digo de antemão
que as perspectivas enunciativas, que levam em consideração que o sentido não
se dá a priori, mas sim no e pelo ato de enunciação, me são bastante
empoderadoras para se pensar em práticas de resistências transfeministas (como
espero mostrar aqui). Contudo, vale ressaltar que nenhuma observação que faço
aqui pretende ser definitiva, na medida em que, como podem ter visto neste
blog, estamos e estaremos sempre atualizando nossas posições e que, muito
embora estas perspectivas linguísticas levem em consideração o que é externo à
linguagem, as questões identitárias são complexas, de forma que elas podem
envolver outros desdobramentos políticos e subjetivos que eu a princípio não
poderia supor em uma breve aplicação teórica que se propõe linguística.
Então, uma
primeira observação que eu acho relevante é, ao invés do próprio significado
destas palavras, falar sobre o que se espera de uma pergunta sobre o que
significa ou o que são as identidades trans* e apontar certas concepções de
linguagem. As pessoas por vezes criam uma ligação muito forte entre o nome dado
a determinada coisa e a própria coisa, de forma que muitas vezes as pessoas
esperam que quando nomeamos ou designamos travestis e transexuais estaríamos
apenas rotulando certas pessoas que existiriam previamente no mundo,
estabelecendo uma relação de referência com o mundo. O que nos mostra, contudo,
autores como Eduardo Guimarães (2007), é que a própria linguagem cria um modo
específico de apreensão do real, ou seja, cria os seus próprios referentes através
de um processo de designação, que é o modo pelo qual o real é significado na
linguagem, ao invés de meramente apontá-los no mundo.
Algo interessante
de se notar também é para a própria pergunta “Qual a diferença entre travestis
e transexuais?”. Percebam que, ao invés desta, poderiam ser feitas outras duas
perguntas separadas, em busca do sentido de cada palavra separadamente. Mas
acredito não ser mera coincidência ser mais comum vermos a pergunta acima do
que simplesmente “O que é travesti? / “O que é transexual” justamente porque
“travesti” e “transexual” se definem mutuamente. Ou seja, o sentido de uma
depende da outra, pois o sentido das palavras se dá sempre em relação a outras
palavras, e não enquanto classificação de objetos (Guimarães, 2007).
Levar em
consideração esta posição não-referencialista irá nos impedir também de definir
os sentidos de travestis e transexuais como um dicionário faz. Também não será
possível admitir que os significados dessas categorias podem ser apreendidos
(como frequentemente se faz) em pequenos glossários acerca de determinados
temas. Ao contrário, o dicionário e o glossário são antes de tudo, textos,
textos esses que apresentam algumas relações de sentidos sobre esses termos
construídos na enunciação, mas que não são universais. Não existe, portanto, um
sentido meramente abstrato e virtual que um dicionário ou glossário poderia
apreender de forma “neutra”.
Aliás, é
importante ressaltar o poder de um certo fetiche que muitas pessoas conferem ao
dicionário. Assim como é muito comum vermos uma instrumentalização do discurso
biológico para deslegitimar as identidades trans* (“uma mulher trans* na
verdade é homem pela biologia”) o mesmo opera com as acepções encontradas no
dicionário. Já me cansei de ver gente dizendo que travestis são “homens que se
vestem de mulher” porque leram isso no dicionário. Então cabe aqui a
advertência: o que está expresso no dicionário muitas vezes pode não
representar a forma como certos grupos minoritários veem a si mesmos, neste
caso, travestis; e também que esta acepção no dicionário não é “neutra”, ela
está sim marcada ideologicamente.
Guimarães (2007)
propõe o conceito de Domínio Semântico de Determinação (DSD) que visa explicar
o funcionamento da significação em um texto. Segundo ele, a “determinação é
fundamental para o sentido das expressões linguísticas”. Então, supondo os
enunciados:
Reportagem mostra
rotina de travestis e prostitutas na noite de Teresina.
Reportagem mostra
rotina de travestis e prostitutas na noite de Teresina. Os clientes de umas e
os das outras raramente se encontravam.
As mulheres
prostitutas e os travestis entrevistados relataram que o fato de serem
profissionais do sexo configura-se como uma profissão legítima.
As prostitutas
entrevistadas, tanto mulheres cisgêneras quanto travestis, disseram sofrer
discriminação.
Mulheres que se
prostituem, sejam travestis ou cisgêneras, estão propensas a sofrerem
discriminação.
Eles nos mostram
como as relações entre as palavras no texto constituem o sentido delas. Embora
em (1) já se encontre uma oposição entre travestis e prostitutas, é em (2) e
(3) que se reforça a relação de oposição entre, respectivamente, travestis e
prostitutas e entre mulheres e travestis. Em (3) mulheres determina prostituta,
mas não travestis, e isso fica ainda mais marcado pelo uso do flexão de gênero
gramatical no masculino para travestis. Porém, em (4), prostituta designa de
forma diferente dos enunciados anteriores, pois determina não apenas mulher,
mas também travesti. Em (5), por sua vez, a designação de mulheres é diferente
de todas as demais, pois determina tanto travestis como cisgêneras.
O chiste da
tirinha abaixo, publicada pela página do facebook “Travesti Reflexiva”, provém
diretamente das relações de sentido estabelecidas entre homem e travesti construídas
na enunciação encenada por um diálogo entre quadrinhos. Se homem determinaria
(ou predicaria) travesti, estabelecendo uma relação de sinonímia, a outra via
de sentido, travesti determinando (ou predicando) homem, passa a soar absurda.
A tira lida com certas incoerências do discurso cissexista por rememorar na
primeira tira um enunciado que é socialmente dizível e amplamente difundido de
que “travestis são homens” que é então problematizado ao apontar, interrogando
acerca da designação que o próprio interlocutor faz de si, a evidência de
existirem outras relações de sentidos que circulam socialmente entre os dois
termos além da mera sinonímia.
Desta forma, a
partir destes exemplos e das contribuições teóricas desta área da linguística,
é que deixamos de considerar o sentido como já dado no mundo (assumindo,
portanto, uma concepção não-referencialista da linguagem) e apontar para a
instabilidade constitutiva do sentido, já que temos que sempre levar em
consideração o sentido como relações entre palavras em um determinado texto,
que por sua vez é entendido como um conjunto de enunciados articulados entre
si. A língua, nesta perspectiva, é pensada não como uma estrutura fechada, mas
como um sistema de regularidades determinado historicamente que é exposto ao
real e aos falantes nos espaços de enunciação (Guimarães, 2007).
Ao ler as
análises de Bruno C. Barbosa (2013) sobre como são feitos os usos das
categorias travesti e transexual e a partir das minhas leituras de reportagens
e artigos que envolviam travestis e transexuais na mídia e em alguns artigos
científicos, percebo que existe a construção de um imaginário de
“superficialidade/abjeção criminal” associada à identidade travesti e um
imaginário de “profundidade/abjeção patológica” associada à identidade
transexual (de forma parecida com o recorte de Barbosa em seu artigo entre
artificialidade e naturalidade). Podemos dizer que os sentidos provenientes
deste imaginário são reforçados/criados pelos discursos médicos e jurídicos,
que como já disse, se ancoram por legitimação institucional capazes de uma
maior circulação o que garante sua hegemonia.
As listas que se
seguem não configuram propriamente um DSD, na medida em que não analisei um
texto ou conjunto de textos, mas já parti da identificação de uma memória
discursiva sobre o sentido destes termos, de forma que o que chamei, por
exemplo, de “ambígua em relação ao binário de gênero” incluir diversas
determinações concretas possíveis, como “não ser/não se sentir homem nem
mulher”. Esses imaginários vão influenciar, portanto, a forma como travesti e
transexual são reescrituradas na enunciação. Isso se dá através dos
determinantes de travesti como:
“ambígua em
relação ao binário de gênero”
“não passível de
ser diagnosticada como portadora de distúrbio de gênero”
“não fez/não quer
fazer a cirurgia de redesignação sexual”
“sexualmente
ativa”
“transexual
falsa/ mulher falsa”
“traços
masculinos”
“marginal”
“criminosa”
“prostituta”
“subversiva”
e de transexual
como:
“não ambígua em
relação ao binário de gênero”
“passível de ser
diagnosticada como portadora de distúrbio de gênero”
“fez/quer fazer a
cirurgia de redesignação sexual”
“não sexualmente
ativa”
“transexual
verdadeira/ mulher verdadeira”
“feminilidade
unívoca”
“disfórica”
“transtornada”
“suicida”
“normativa”
Vale uma
observação sobre como as determinações encontradas em uma categoria implicam o
sentido das outras determinações da outra categoria de uma forma mais ou menos
implícita, criando uma rede intrincada e complexa de sentidos que visa produzir
uma coerência entre eles que acaba por reforçar as supostas diferenças
essenciais entre travestis e transexuais. Estas diferenças são tomadas como
evidências de sentidos que acabam por reforçar a aparência das palavras como
substâncias (objetos no mundo) que por sua vez corroborará a hipótese de gênero
(ou seus transtornos) enquanto uma categoria nosológica e a
transexualidade/travestilidade como patologias diagnosticáveis[1]. Afinal de
contas, se o sentido destas categorias estiver apenas “colado” em algum corpo
fora da linguagem, o corpo tido abjeto das pessoas trans*, estabelecendo uma
relação de referência, bastaria garantir o crivo e separar o joio do trigo, de
modo à pretensamente observar se a relação entre a enunciação/identidade da
pessoa realmente conferir com uma suposta realidade: as pessoas trans* falsas
de um lado e as verdadeiras de outro.
Voltando às
determinações, é de se esperar que uma pessoa marginalizada (determinação de
travesti) tenha muito mais dificuldade de poder concretamente “ser diagnosticada
como portadora de um distúrbio de gênero”, justamente pelo fato recorrente das
travestis não conseguirem ao menos acessar cuidados básicos de saúde [2],
interditando, de certa forma, que travesti seja determinada por termos afeitos
à saúde mental, já que estes termos são condicionados a um crivo psicológico
(que pressupõe, portanto, o acesso a cuidados de saúde). Aliás, há alguns casos
de “exceção” a esse caso (que acabam por só reforçá-lo na verdade), quando a
determinação “suicida” muitas vezes só é utilizada para determinar travesti em
ocasiões muito específicas (mas apenas para reforçar os imaginários de que
falei), em especial para justificar a necessidade de terapias
psicológicas/psiquiátricas obrigatórias, articulando o mito da visão suicidógena
(Bento, 2012) e a validade do diagnóstico médico.
Da mesma forma,
existe uma interdição de determinantes de transexual que dizem respeito à
profissão, pois se por acaso transexual for determinada como prostituta,
existirá uma associação entre sua profissão e uma consequente deslegitimação de
sua identidade, na medida em que se associa fortemente a prostituição com
diversos outros determinantes de travestis, como “sexualmente ativas” e
“marginais/ criminosas”. Neste sentido,
certos fatos externos à linguagem refletem como as relações de determinação
linguística são construídas na enunciação.
Contudo, isso não quer dizer que exista, como disse anteriormente, uma
relação direta e inequívoca entre mundo e linguagem, mas como define Guimarães
(2007), a partilha do real não se projeta sobre a linguagem diretamente e o
caráter relacional do sentido ficou bastante evidente, na medida em que
travesti significa na relação de seus determinantes com o que justamente não
significam os determinantes de transexual e vice-versa. Outro fator externo à
linguagem que certamente influencia as designações e reescriturações de
travesti e transexual feitas pela enunciação são recortes de raça, classe e
orientação sexual que poderei abordar numa futura análise.
A transgressão de
gênero das travestis é determinada pelo aspecto de “vestir” (remetendo a uma
superficialidade) enquanto as transexuais pelo de “sentir” (remetendo a uma
profundidade). A retificação deste recorte de sentidos (orientados pelos
imaginários superficialidade/abjeção criminal e profundidade/abjeção
patológica) tenderá a reproduzir as formas de dominação através de cissexismos
diversos, em especial a marginalização das travestis que serão determinadas com
traços que “superficializam” tanto seus gêneros quanto suas próprias
humanidades, já que suas identidades femininas se deslegitimariam por meio
destas formas de se designar “superficiais”. Do outro lado, há as determinações
que “aprofundam” os sentidos de transexuais na medida em que, ao “explicar”
subalternamente suas existências e operando por meio de essencialismos
(estratégicos ou não), houvesse a necessidade de apelar a praticamente uma
construção metafísica, como vistos frequentemente em “almas femininas
aprisionadas em corpos masculinos” e “diagnosticadas”. Transexuais são
assujeitadas a formularem (ou serem formuladas) por meio dessas expressões a
fim de legitimarem suas existências e conseguirem sobreviver em uma sociedade
nitidamente transfóbica por meio da vendida “cura” (através dos dispositivos do
diagnóstico e do laudo) por médicos psiquiatras, por isso são abjeções
patológicas. Já travestis são a face vazia do Outro, na qual não foi possível a
construção de uma inteligibilidade pelo discurso médico, tratando-se de uma
dupla abjeção por não apenas infringir a lei da cisgeneridade compulsória, mas
a própria lei do gênero enquanto binário; essa dupla infração não é perdoada
pelo cistema, por isso são abjeções criminais. Não à toa associarem o lugar
social de transexuais com as clínicas e das travestis com a prisão e as pistas
de prostituição, o que remete bem aos estereótipos de “doida” e “puta”
apontados por Barbosa (2013).
No entanto, quero
mostrar, assim como ele fez acerca das potencialidades de deslocamento dos
sentidos de travestis e transexuais , que a enunciação torna possível uma forma
de empoderamento e resistência antinormativa, pois é a partir dela que pode
existir a auto identificação (que tanto prezamos no transfeminismo) sobre
nossas identidades. Ao invés de designar as diferenças entre travestis e
transexuais como postulam médicxs e juízxs é possível designar as semelhanças
(ou diferenças, de fato, já que vão sempre tender a existir, mas que sejam
agora relevantes politicamente) e a partir disso, ensejar formas de
solidariedade entre pessoas trans* que visem à crítica institucional da
transfobia [3]. Como exatamente fazer isso? Não é uma resposta fácil, nem dada.
Espero que consigamos construir isso coletivamente.
Apontar a
opacidade da língua, portanto, é apontar que existem disputas. Se tomarmos os
sentidos já dados como mera virtualidade acerca de travestis e transexuais
estaremos dando de mão beijada a supremacia de apenas uma forma de apreensão
deste real, que não é à toa que se trata da apreensão feita pelos discursos
médicos e jurídicos que visam apenas produzir controles cisnormativos,
marginalidades e abjeções sobre nossas identidades. Apontar o funcionamento da língua se mostrou
para mim como uma forma de resistência à própria patologização das identidades
trans*, pois, levando em consideração que as categorias travesti e transexual
não configuram substâncias/seres, mas sim palavras, a apreensão deste real por
dispositivos de saber da biologia/medicina se torna não apenas um erro
epistemológico, mas a própria reprodução das relações de poder que envolvem a
transfobia e transmisoginia.
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