O texto a seguir promove o debate do
feminismo além do gênero, levando-o às questões de raça, em que o feminismo
negro é incorporado e tem papel primordial. A autora ainda critica algumas
produções científicas acerca do tema gênero
e reforça a relevância para que elas sejam mais ativistas, o que seria uma
forma de aproximá-las do dia a dia da mulher negra pobre, que compõe parte
significativa do mercado trabalho, no qual o sistema é capitalista, sexista e
racista.(Carolina Ferreira)
Divulgado
pelo site Blogueiras Negras
Por Marjorie Chaves
À medida que mais e mais mulheres adquiriram prestígio, fama ou dinheiro
a partir de textos feministas ou de ganhos com o movimento feminista por
igualdade no mercado de trabalho, o oportunismo individual prejudicou os apelos
à luta coletiva.
bell hooks
Não há capitalismo sem racismo.
Malcolm X
Não há luta antirracista e
antissexista fora da luta de classes. Pesquisas que sintetizam informações
estatísticas desagregadas em gênero e raça como o Anuário das Mulheres
Brasileiras (2011) evidenciam a situação de indigência e pobreza vivida por
mulheres negras e a sua concentração em postos de trabalhado vulneráveis como o
trabalho doméstico e o de cuidados em regiões metropolitanas e Distrito
Federal. Os recentes estudos sobre relações de gênero no mundo do trabalho
pouco têm avançado em considerar a questão racial como um dos principais elementos
na distribuição de lugares e papéis sociais que constituem as desigualdades na
sociedade capitalista.
Esse silenciamento pode ser explicado
pela maneira como vêm se consolidando os estudos feministas e de gênero nas
universidades brasileiras com produções teóricas cada vez mais sofisticadas e
distanciadas da realidade de mulheres pobres e racializadas que compõem parte
significativa da força de trabalho. Para bell hooks (1984), “tem sido mais fácil para as mulheres brancas que não vivenciam
opressão de raça ou classe se concentrarem exclusivamente no gênero”.
Nas décadas de 1970 e 1980 feministas
negras como Angela Davis, bell hooks e Lélia Gonzalez já apontavam que a luta
antirracista é indissolúvel da luta de classes. A recusa de feministas em
reconhecer outras experiências de mulheres (que não as brancas, universitárias
e de classe média) suprimiu a conexão entre raça e classe, escamoteando a
situação de privilégio de um seleto grupo de mulheres forjado pelo discurso da
“opressão comum”.
Nancy Fraser (2009) lembra o quanto o
feminismo prosperou no momento da ascensão do neoliberalismo em que as
reivindicações por justiça foram substituídas em função do reconhecimento da
identidade e da diferença, reprimindo a memória de um igualitarismo social. A
promessa emancipatória do feminismo, aos poucos deu lugar aos interesses
individuais de mulheres privilegiadas que almejavam a igualdade com os homens
de sua classe. As lutas feministas foram facilmente cooptadas pelo pensamento
burguês à medida que mulheres brancas foram beneficiadas pelo movimento.
O capitalismo não cria desigualdades
raciais e de gênero, ele as apropria. O racismo e o sexismo operam de modo a
criar disputas dentro da própria classe trabalhadora gerando privilégios na
competição por ocupações do mercado de trabalho. A divisão sexual do trabalho
(HIRATA; KERGOAT, 2007) em que há, supostamente, trabalhos de mulheres e
trabalhos de homens, sendo os desses últimos mais valorizados, não funciona da
mesma maneira para todas as mulheres. A experiência de mulheres negras na
diáspora é a experiência do trabalho, sempre estivemos nas ruas oferecendo todo
tipo de serviço.
Cada vez que mais e mais mulheres
passaram a ocupar o mercado de trabalho, foi preciso que outras assegurassem
seu trabalho doméstico criando uma subdivisão de classe no interior da divisão
sexual do trabalho (ÁVILA, 2010). A delegação de tarefas, além de não
proporcionar a divisão igualitária do trabalho reprodutivo entre homens e
mulheres, perpetua as desigualdades entre mulheres, assim como as desigualdades
raciais, já que são as mulheres negras que historicamente ocupam o lugar do
trabalho doméstico remunerado.
Se a autocrítica faz parte da ação e
da elaboração teórica dos feminismos, como alguém pode considerar a si mesmo como
feminista sendo liberal e racista? Muitas organizações contemporâneas de
mulheres negras sequer utilizam o termo “feminismo” para designar sua prática
política. No entanto, o que costumamos nomear de prática feminista negra ou
pensamento negro feminista é o conhecimento gerado a partir da própria
experiência em resposta às opressões que interseccionam gênero, raça, classe e
sexualidade (COLLINS, 2012), afirmando um posicionamento crítico ao feminismo
hegemônico que pouco tem nos representado. É necessário refletir sobre qual
emancipação queremos, pois as lutas antissexistas e antirracistas por si só não
abalam as estruturas do capitalismo que, por seu oportunismo sistemático,
apropria-se das desigualdades raciais e de gênero para acirrar a exploração econômica
e fragmentar todas as formas de resistência.
Referências:
ÁVILA, Maria Betânia. Divisões e
tensões em torno do tempo do trabalho doméstico no cotidiano. Revista do
Observatório Brasil da Igualdade de Gênero. Edição especial – Tema: Trabalho e
Gênero. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2010.
p.67-76.
COLLINS, Patricia Hill. Rasgos
distintivos del pensamiento feminista negro. In: JABARDO, Mercedes
(Ed.). Feminismos negros: uma antología. España: Traficantes de Sueños,
2012. p. 99 a 134.
DIEESE. Anuário das mulheres
brasileiras. São Paulo: DIEESE, 2011.
FRASER, Nancy. O feminismo, o
capitalismo e a astúcia da história. Mediações. Londrina, v. 14, n. 2, p.
11-22, jul./dez. 2009.
HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle.
Novas configurações da divisão sexual do trabalho. São Paulo, Cadernos de
pesquisa, v. 37, n. 132, set.-dez. 2007, p. 595-609.
HOOKS, bell.
Feminist Theory: from margin to center. Boston and Brooklyn: South End Press
Classics, 1984.
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