Texto divulgado pelo blog Ensaios Sobre
Gênero. Nele, o autor discute sobre as questões de masculinidade e feminilidade
nos banheiros públicos, fazendo uma analogia à sociedade e suas diretrizes na
construção do gênero, seja ele feminino ou masculino. Reportagem divulgada em
04/05/2012 (http://ensaiosdegenero.wordpress.com/).
(Rodrigo Andrade)
Foto: site Ensaios Sobre Gênero |
Por Lucas Passos
Ocupado ou livre, banheiro masculino ou
feminino, homens ou mulheres, chapéu masculino ou feminino, damas ou
cavalheiros, pictograma masculino ou feminino – o que há por trás dos banheiros
públicos, dos mictórios, daquelas cabines onde você, estando apertado ou não,
vai fazer merda, mijar, os dois, alguém está com diarréia? Aliás, parece justo
supor que existe um mais do que a matéria, do que a organização, do que o
pictograma masculino ou feminino, um tipo de relação de poder que seria
anterior a essas representações e que fosse mesmo o lugar por onde elas
emergiram? O banheiro público está a serviço de quem? Da merda, da urina?
Pensemos, por exemplo, a partir do texto Banheiros
públicos segregados: mais um ataque aos LGBT, de Adriano Senkevics nesse
blog, no cartunista Laerte Coutinho, indo ao banheiro feminino e sendo barrado,
depois de reconhecido, porque no “fundo da cena”, além das roupas femininas, do
cabelo longo, da maquiagem, Laerte é homem e Laerte deve ir ao banheiro
masculino, ao banheiro que está sob o signo de “cavalheiros”, “chapéus
masculinos”, o famoso pictograma masculino que indica que aqui sim é um
banheiro para homens!
De fato, os sanitários públicos estão a
serviço da merda e da urina, e, segundo Beatriz Preciado em Basura y Gênero: Mear/Cagar.
Masculino/Feminino (2002), são espaços de gestão do lixo corporal nos
espaços urbanos que foram generalizados em cidades europeias a partir do século
XIX, mas também são espaços que surgem e são impostos pela burguesia dessa
época, estabelecendo novos códigos conjugais e domésticos, ao mesmo tempo que
exige uma redefinição espacial dos gêneros. Voltando a Laerte ou qualquer outra
pessoa que vai ao banheiro público, que está indo neste momento ou que irá,
vemos que independente se esse “eu” vai mijar ou cagar, está com diarreia ou
não, o sanitário público exige uma redesignação sexual, uma evocação
performativa do gênero que se iguala àquela fundadora do sujeito na “mesa de
nascimento”. Você é homem ou mulher? — o banheiro “pergunta” ao “eu”, da mesma
forma que o médico se pergunta sobre o sexo dos bebês de suas pacientes, e de
novo, homem ou mulher, masculino ou feminino, damas ou cavalheiros, o banheiro
trabalha para a mesma lógica excludente e exclusiva do sistema sexo/gênero.
Aparentemente, argumenta Preciado
(2002), o espaço público da sujeira corporal parece colocar-se a serviço de
necessidades naturais mais básicas, quando, na verdade, sua própria organização
opera silenciosamente como a mais discreta e efetiva das, no sentido encontrado
em Teresa de Lauretis, tecnologias de gênero. Assim, os sanitários públicos,
sustenta a autora, são cabines de vigilância de gênero, espaços públicos que
avaliam a adequação de cada corpo nos códigos vigentes da masculinidade e da
feminilidade, de forma que você se dirige ao banheiro e na porta deles existe a
interpelação do gênero: masculino ou feminino?
Mas não se enganem, conforme nos alerta
Preciado, no banheiro não importa que necessidade fisiológica você fará, a única
coisa que importa é o gênero, ele não é o lugar de se desfazer da urina e da
merda, mas antes, o lugar de refazer-se do seu gênero. A autora cita ainda os
banheiros do aeroporto George Pampidou, em Paris, nos quais existem visitantes
casuais dos sanitários femininos que inspecionam o gênero das usuárias para
certificarem que elas são realmente mulheres, assim essa pequena multidão de
mulheres “femininas” se misturam às demais no banheiro e atuam anonimamente,
mas controlando o acesso de novos visitantes aos vários compartimentos
privados, os sanitários, e qualquer suspeita (cabelos excessivamente curtos,
sem maquiagem, passo muito afirmativo) as pessoas são barradas e interrogadas
sobre a coerência de sua escolha de sanitário, uma vez que “o banheiros dos
homens está a direita!”.
Superando este exame, Preciado nos
descreve a organização desses sanitários femininos: as cabines, cômodos de 1
por 1,50 m², tentam reproduzir em miniatura a privacidade de um banheiro
doméstico, mas o fato é que você (mulher!) entra no sanitário, vai a uma
cabine, fecha a porta, abaixa as “saias”, senta-se em um vaso branco de 40 a 50
cm de altura, quanta diminuição de si própria! A feminilidade, argumenta a
autora, é produzida por essa diminuição de toda função fisiológica do olhar
público, enquanto que, se nos dirigirmos para os banheiros dos rapazes, na
altura de 80 a 90 cm estão os mictórios na visão pública e de outro lado
espaços fechados, privados, divididos, com portas de trinco e vasos semelhantes
com o do banheiro das mulheres.
Essa lei arquitetônica, vinda de
princípios do século XX, estabelece uma divisão precisa no banheiro masculino,
separando as funções: mijar-de-pé (mictório)/cagar-sentado (vaso). De forma
que, segundo a autora, a masculinidade heterossexual se produz mediante a
separação imperativa entre o genital e o anal, assim o mictório cresce desde a
parede e se ajusta ao corpo masculino “naturalmente”, atuando como uma prótese
de masculinidade, facilitando a postura vertical e ereta para mijar sem receber
respingos. Mijar-de-pé-entre-homens, ela argumenta, é uma atividade cultural
que gera vínculos de sociabilidade entre todos aqueles que ao fazê-lo são
reconhecidos como homens, sendo, portanto, umas das performances construtivas
da masculinidade heterossexual moderna.
Claramente, segundo Preciado (2002),
duas lógicas opostas estão em questão, uma vez que, por uma lado, o banheiro
feminino é a reprodução de um espaço doméstico no espaço público e por outro
lado, o banheiro masculino são espaços públicos que intensificam a visibilidade
e a posição ereta que definem o espaço público como espaço de masculinidade.
Ainda, conforme a autora, a divisão espacial entre as funções genitais e anais
nos banheiros masculinos, protege contra uma possível tentação homossexual (uma
releitura da autora em Lee Edelman nos alerta para alerta para a ordem que o
ânus masculino deve abrir-se somente em espaços privados e longe da visão de
outros homens, caso contrário, poderia suscitar um convite homossexual), ou,
antes mesmo, condena-a no âmbito da privacidade, assim o vaso é uma prótese de
gênero que funciona como símbolo de feminilidade abjeta/sentada, longe de
qualquer visão pública.
Enfim, o texto da autora proporciona
várias análises entre, como sugere o próprio título, sujeira/gênero,
mijar/cagar, masculino/feminino, mostrando a ordem pela qual operam os
banheiros públicos, uma vez que eles não são cabines de sujeiras, do lixo
corporal, mas cabines de gênero, conforme a própria autora, vamos no banheiro
para fazer as nossas necessidades de gênero, reafirmar os códigos da
masculinidade e da feminilidade heterossexual no espaço público. Preciado nos
alerta para que não nos enganemos, uma vez que a máquina capital-heterossexual
não desperdiça absolutamente nada, cada momento de evacuar, é tomada como
ocasião de reproduzir os gêneros e as máquinas que comem nossas sujeiras são
normativas próteses de gênero.
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