sábado, 26 de julho de 2014

Banheiros, próteses de gênero: uma análise para além da sujeira

Texto divulgado pelo blog Ensaios Sobre Gênero. Nele, o autor discute sobre as questões de masculinidade e feminilidade nos banheiros públicos, fazendo uma analogia à sociedade e suas diretrizes na construção do gênero, seja ele feminino ou masculino. Reportagem divulgada em 04/05/2012 (http://ensaiosdegenero.wordpress.com/). (Rodrigo Andrade)

Foto: site Ensaios Sobre Gênero

Por Lucas Passos
Ocupado ou livre, banheiro masculino ou feminino, homens ou mulheres, chapéu masculino ou feminino, damas ou cavalheiros, pictograma masculino ou feminino – o que há por trás dos banheiros públicos, dos mictórios, daquelas cabines onde você, estando apertado ou não, vai fazer merda, mijar, os dois, alguém está com diarréia? Aliás, parece justo supor que existe um mais do que a matéria, do que a organização, do que o pictograma masculino ou feminino, um tipo de relação de poder que seria anterior a essas representações e que fosse mesmo o lugar por onde elas emergiram? O banheiro público está a serviço de quem? Da merda, da urina? Pensemos, por exemplo, a partir do texto Banheiros públicos segregados: mais um ataque aos LGBT, de Adriano Senkevics nesse blog, no cartunista Laerte Coutinho, indo ao banheiro feminino e sendo barrado, depois de reconhecido, porque no “fundo da cena”, além das roupas femininas, do cabelo longo, da maquiagem, Laerte é homem e Laerte deve ir ao banheiro masculino, ao banheiro que está sob o signo de “cavalheiros”, “chapéus masculinos”, o famoso pictograma masculino que indica que aqui sim é um banheiro para homens!

De fato, os sanitários públicos estão a serviço da merda e da urina, e, segundo Beatriz Preciado em Basura y Gênero: Mear/Cagar. Masculino/Feminino (2002), são espaços de gestão do lixo corporal nos espaços urbanos que foram generalizados em cidades europeias a partir do século XIX, mas também são espaços que surgem e são impostos pela burguesia dessa época, estabelecendo novos códigos conjugais e domésticos, ao mesmo tempo que exige uma redefinição espacial dos gêneros. Voltando a Laerte ou qualquer outra pessoa que vai ao banheiro público, que está indo neste momento ou que irá, vemos que independente se esse “eu” vai mijar ou cagar, está com diarreia ou não, o sanitário público exige uma redesignação sexual, uma evocação performativa do gênero que se iguala àquela fundadora do sujeito na “mesa de nascimento”. Você é homem ou mulher? — o banheiro “pergunta” ao “eu”, da mesma forma que o médico se pergunta sobre o sexo dos bebês de suas pacientes, e de novo, homem ou mulher, masculino ou feminino, damas ou cavalheiros, o banheiro trabalha para a mesma lógica excludente e exclusiva do sistema sexo/gênero.
Aparentemente, argumenta Preciado (2002), o espaço público da sujeira corporal parece colocar-se a serviço de necessidades naturais mais básicas, quando, na verdade, sua própria organização opera silenciosamente como a mais discreta e efetiva das, no sentido encontrado em Teresa de Lauretis, tecnologias de gênero. Assim, os sanitários públicos, sustenta a autora, são cabines de vigilância de gênero, espaços públicos que avaliam a adequação de cada corpo nos códigos vigentes da masculinidade e da feminilidade, de forma que você se dirige ao banheiro e na porta deles existe a interpelação do gênero: masculino ou feminino?
Mas não se enganem, conforme nos alerta Preciado, no banheiro não importa que necessidade fisiológica você fará, a única coisa que importa é o gênero, ele não é o lugar de se desfazer da urina e da merda, mas antes, o lugar de refazer-se do seu gênero. A autora cita ainda os banheiros do aeroporto George Pampidou, em Paris, nos quais existem visitantes casuais dos sanitários femininos que inspecionam o gênero das usuárias para certificarem que elas são realmente mulheres, assim essa pequena multidão de mulheres “femininas” se misturam às demais no banheiro e atuam anonimamente, mas controlando o acesso de novos visitantes aos vários compartimentos privados, os sanitários, e qualquer suspeita (cabelos excessivamente curtos, sem maquiagem, passo muito afirmativo) as pessoas são barradas e interrogadas sobre a coerência de sua escolha de sanitário, uma vez que “o banheiros dos homens está a direita!”.
Superando este exame, Preciado nos descreve a organização desses sanitários femininos: as cabines, cômodos de 1 por 1,50 m², tentam reproduzir em miniatura a privacidade de um banheiro doméstico, mas o fato é que você (mulher!) entra no sanitário, vai a uma cabine, fecha a porta, abaixa as “saias”, senta-se em um vaso branco de 40 a 50 cm de altura, quanta diminuição de si própria! A feminilidade, argumenta a autora, é produzida por essa diminuição de toda função fisiológica do olhar público, enquanto que, se nos dirigirmos para os banheiros dos rapazes, na altura de 80 a 90 cm estão os mictórios na visão pública e de outro lado espaços fechados, privados, divididos, com portas de trinco e vasos semelhantes com o do banheiro das mulheres.
Essa lei arquitetônica, vinda de princípios do século XX, estabelece uma divisão precisa no banheiro masculino, separando as funções: mijar-de-pé (mictório)/cagar-sentado (vaso). De forma que, segundo a autora, a masculinidade heterossexual se produz mediante a separação imperativa entre o genital e o anal, assim o mictório cresce desde a parede e se ajusta ao corpo masculino “naturalmente”, atuando como uma prótese de masculinidade, facilitando a postura vertical e ereta para mijar sem receber respingos. Mijar-de-pé-entre-homens, ela argumenta, é uma atividade cultural que gera vínculos de sociabilidade entre todos aqueles que ao fazê-lo são reconhecidos como homens, sendo, portanto, umas das performances construtivas da masculinidade heterossexual moderna.
Claramente, segundo Preciado (2002), duas lógicas opostas estão em questão, uma vez que, por uma lado, o banheiro feminino é a reprodução de um espaço doméstico no espaço público e por outro lado, o banheiro masculino são espaços públicos que intensificam a visibilidade e a posição ereta que definem o espaço público como espaço de masculinidade. Ainda, conforme a autora, a divisão espacial entre as funções genitais e anais nos banheiros masculinos, protege contra uma possível tentação homossexual (uma releitura da autora em Lee Edelman nos alerta para alerta para a ordem que o ânus masculino deve abrir-se somente em espaços privados e longe da visão de outros homens, caso contrário, poderia suscitar um convite homossexual), ou, antes mesmo, condena-a no âmbito da privacidade, assim o vaso é uma prótese de gênero que funciona como símbolo de feminilidade abjeta/sentada, longe de qualquer visão pública.
Enfim, o texto da autora proporciona várias análises entre, como sugere o próprio título, sujeira/gênero, mijar/cagar, masculino/feminino, mostrando a ordem pela qual operam os banheiros públicos, uma vez que eles não são cabines de sujeiras, do lixo corporal, mas cabines de gênero, conforme a própria autora, vamos no banheiro para fazer as nossas necessidades de gênero, reafirmar os códigos da masculinidade e da feminilidade heterossexual no espaço público. Preciado nos alerta para que não nos enganemos, uma vez que a máquina capital-heterossexual não desperdiça absolutamente nada, cada momento de evacuar, é tomada como ocasião de reproduzir os gêneros e as máquinas que comem nossas sujeiras são normativas próteses de gênero.

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