Voltando ao termo cisgênero, assunto abordado
em outra postagem nossa (http://reconvexoegenero.blogspot.com.br/2014/05/o-que-sao-pessoas-cis-e-cissexismo.html),
neste texto a autora explica, principalmente, acerca da necessidade de
problematizar as evidências de sentidos do termo e sua aplicação política na
causa transgênera. Texto divulgado pelo site http://transfeminismo.com/
em 28 de junho de 2014. (Rodrigo Andrade).
Por Bia Bagagli
Foto: site Transfeminismo |
Escrevo este texto pensando o encontro que a defensoria
pública realizou para falar sobre “identidades trans”, em que estavam presentes
a psicóloga Bárbara Dalcanale Menêses e o assessor técnico do centro de
referência LGBT, Márcio Régis Vacon como palestrantes. Ao se falar sobre
transgeneridade, é urgente problematizarmos certas evidências de sentidos, na
medida em que considero extremamente importante o não apagamento do político da
questão transgênera. Aprendi com a análise de discurso fundada por Michel
Pêcheux (AD) que a impressão que as palavras designam inequivocamente coisas e
objetos no mundo se dá através de um efeito ideológico; também aprendi,
contudo, que a ideologia funciona pela falha. Isso significa dizer, entre
outras coisas, que o sentido, apesar de parecer evidente, pode ser sempre
outro, a partir do momento em que a língua (para significar) necessita da
inscrição da história, e com isso, os sentidos estão sempre já divididos pelas
contradições das lutas de classes. Dizemos, portanto, que a linguagem não é
transparente, já que ela não designa de forma unívoca; ela é, ao contrário,
opaca.
Para a AD, a falha da língua pela
ideologia se denomina equívoco. A ideologia aqui é entendida como necessária
para a relação do sujeito com os sentidos, se distanciando, portanto, de
concepções de ideologia como “ocultação da verdade”. É a partir de uma formação
discursiva que os sentidos vão ser mobilizados através de uma posição de
sujeito (um exemplo clássico para entender isso sucintamente quando, a rede
Globo, por exemplo, utiliza “invasão” enquanto que um blog de esquerda, para
referenciar a mesma situação, irá utilizar o termo “ocupação”; os sentidos
estão divididos, e uma posição sujeito determina, neste caso, uma “escolha”
diferente do léxico).
Então o que a cisgeneridade diz
respeito ao equívoco da língua? O que diz respeito ao (apagamento do) político?
Certamente muita coisa. Bárbara começou sua palestra “explicando” quem eram (ou
o que eram?) as letrinhas da sigla LGBT. LGB são pessoas não heterossexuais,
dizem respeito às orientações sexuais, e o T são pessoas trans*, diz respeito
às identidades de gênero. Percebam, contudo, que essa definição, a priori,
“correta”, mobiliza certas evidências, pré-construídas. Por que, ao falar sobre
pessoas não-heterosexuais, sempre referenciamos pessoas cisgêneras? Quem são os
(cisgêneros) gays, lésbicas e bissexuais afinal de contas? Por que o tema da
identidade de gênero é sempre secundarizado (e como isso se dá historicamente,
na materialização dos discursos?)?
Os LGB são sempre os homens e mulheres
(cisgêneros) que se atraem por homens e mulheres (cisgêneros); enquanto que o T
apenas atrapalha essa cadeia de significações. Essa é uma das evidências de
sentido sobre a sigla LGBT: a tensão/contradição entre a reunião entre
orientações sexuais desviantes e identidades de gêneros desviantes não é
“resolvida” (ou é para mim, enquanto transfeminista, a materialização de um
discurso cissexista) de forma satisfatória pela posição de sujeito cisgênera,
na medida em que apaga a possibilidade de (existência do) sujeito trans*, e
também apaga a própria possibilidade do sujeito trans* de ter uma sexualidade
(!). Não somos destituídxs “apenas” da família, do acesso à educação e
empregos, mas também da ordem significante que simboliza a sexualidade. Não
temos também o direito de termos desejos! A sexualidade de uma mulher trans* em
especial é vista de forma abjeta pelo discurso médico. Somos obrigadas a
realizar o impossível em busca do laudo: ora performando uma identidade heterossexual
legitimada socialmente, ora performando uma identidade assexual na qual nunca é
suficiente, já que sempre somos passíveis de sermos desqualificadas enquanto
mulher e enquanto ser humano por qualquer sinal (ou ausência) de
sexualidade/gênero.
Esses sentidos desarticulam a
possibilidade de resistências transgêneras, já que a própria possibilidade de
humanidade nos é interditada pela linguagem. É aí que o simbólico diz respeito
ao político, aliás. Afinal de contas, quem nunca se deparou com o equívoco
(percebam a relação sempre com o linguístico e os significantes) acerca da
orientação sexual tanto de pessoas trans* quanto de pessoas (cisgêneras) que se
atraem por pessoas trans*? A pessoa (cisgênero) que namora uma mulher
trans*/homem trans* é “hétero” ou “homo”? Ou nenhum dos dois? Risos!
A transgeneridade (enquanto
cisgeneridade mostrada em sua opacidade significante), portanto, é uma
verdadeira arma (aliás, arrisco dizer a maior delas) contra a
heteronormatividade. Quem dera os gays (cisgêneros) dessem conta disso e
articulassem isso politicamente… mas infelizmente é mais fácil se apegar a
certas identidades essencializadas, tomadas como transparência da linguagem.
Identidades essas, que dizem respeito à orientação sexual, que pessoas trans*
não têm o privilégio de reivindicarem plenamente. Falar sobre tudo isso,
portanto, é também falar sobre o impossível da orientação sexual, sobre suas
falhas, equívocos.
Os sentidos sobre a sexualidade das
pessoas trans* estão interditados na medida em que o sujeito (de orientação
sexual neste caso) universal é cisgênero. E isso se dá através das evidências
mobilizadas pela posição de sujeito cisgênera. Por que pessoas trans* são
sempre o puxadinho (precário) da laje da significação, são sempre o Outro, que,
a partir do momento (contraditório) em que se reconhece o real deste grupo até
certa medida: até a medida em que a cisgeneridade é posta como ponto
incontornável (e insuportável)? São sempre aqueles que sobram, são o Outro não
na sua relação de alteridade, mas na sua relação de abjeção. A simbolização da
linguagem de tudo o que se refere a transgeneridade (o real) pela posição de
sujeito cisgênera é marcada pelo político, pelas relações de poder. Isso
significa que há uma “afirmação de pertencimento dos que não estão incluídos,
caracterizada pela contradição de uma normatividade que estabelece
(desigualmente) uma divisão do real”, como bem define Eduardo Guimarães na sua
semântica do acontecimento. E o discurso da biologia também é mobilizado por
esse discurso cisgênero (designar pessoas cisgêneras como “biológicas” é um
exemplo disso). E inserir o biológico na discussão é o mesmo que retirar-se do
debate político.
Que existe um desconforto de pessoas
cis com o termo cis não é novidade. Já falei muito disso aqui no blog. O que
também é curioso é ver pessoas trans* “defendendo” a não utilização do termo
cisgênero. Isso apenas nos mostra que a posição do sujeito não é empírica nem
automática: pessoas trans* podem assumir esta posição de sujeito cisgênera,
assim como pessoas cis podem assumir uma posição de sujeito trans* (ou
transfeminista).
Vejamos certos efeitos de sentidos nos
enunciados:
·
As
pessoas trans* são aquelas que se identificam com o gênero oposto.
·
O
homem que se veste como mulher é uma mulher transexual.
·
O
que diferencia uma transexual de uma mulher é o biológico.
Nos enunciados há o efeito de
pré-construído. Isso significa que algo nos enunciados “disse antes,
independentemente” que atravessa o dizer e que, nestes casos, se dá sobre a
forma da contradição, gerando um efeito de sentido ora paradoxal, ora
transparente. Quando se define que uma “pessoa trans é aquela que se identifica
com o gênero oposto” se afirma, por meio do implícito, que a pessoa trans
pertence a um gênero (ela “é” alguma coisa) com o qual ela não se identifica. É
aí que o equívoco se manifesta: como posso me identificar com algo que desde
sempre (desde todos os dizeres, os já-ditos) eu já não seja? Este
pré-construído articula dizeres anteriores que afirmam que mulheres trans* não
são mulheres e homens trans* não são homens. Qual é o gênero oposto de uma
mulher trans*: o feminino ou masculino? Este enunciado afirma o paradoxal: o
gênero “oposto” de uma mulher trans*, a partir do seu próprio ponto de vista, é
o masculino. Como poderia uma mulher se identificar com o gênero masculino?
Sentidos de transparência acerca dos termos “homem” e “mulher” atuam de forma
semelhante no segundo enunciado. Esses efeitos de pré-construído se dão através
de um atravessamento com o discurso da biologia/medicina, no qual o desígnio de
gênero ao nascer é mobilizado como evidência de que “sejamos” homens ou
mulheres produzindo coerência para os termos “homens” e “mulheres”. Por isso o
terceiro enunciado possui efeito de transparência. Mas aqui vai o equívoco:
falar sobre transgeneridade é falar sobre o biológico? Como, então, esses
enunciados podem ser tão transparentes? Como essa relação de transparência se
deu historicamente? É hora de deixar para trás o “biológico” para se falar
sobre (cis)generidade. Isso significa dizer, afinal, que pessoas cis não são
biológicas.
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