Vivemos em uma sociedade
ciscêntrica, cisnormativa. Isso ocorre porque as pessoas cis detém o poder de
decisão sobre as pessoas não-cis dentro de vários âmbitos: Médico, Político, Jurídico,
Financeiro etc. Reportagem divulgada pelo site (http://ensaiosdegenero.wordpress.com) no dia 17 de setembro de 2012
(Rodrigo Andrade).
Por Hailey Kaas
O que são pessoas cis e cissexismo?
Mas
quem são as pessoas cis? Utilizei a seguinte definição a priori:
“Uma
pessoa cis é uma pessoa na qual o sexo designado ao nascer + sentimento
interno/subjetivo de sexo + gênero designado ao nascer + sentimento
interno/subjetivo de gênero, estão ‘alinhados’ ou ‘deste mesmo lado’ – o
prefixo cis em latim significa “deste lado” (e não do
outro), uma pessoa cis pode ser tanto cissexual e cisgênera mas nem sempre,
porém em geral ambos.”
Uma
pessoa cis é aquela que politicamente mantém um status de privilégio em
detrimentos das pessoas trans*, dentro da cisnorma. Ou seja, ela é
politicamente vista como “alinhada” dentro de seu corpo e de seu gênero.
Foto: site Ensaios de Gênero |
Quero
evitar dicotomizar aqui sexo e gênero, pois muito embora essas categorias sejam
divisíveis para problematização, a ideia que a ciência construiu sobre o sexo é
pré-discursiva, ou seja, é como se fosse compulsoriamente uma verdade.
Voltando
na definição cis. Eu já havia retificado minha afirmação prévia em outra
postagem, na qual elimino a discussão etimológica sobre o prefixo cis, porque
não é cabível em uma discussão que se quer puramente política. Não queremos
criar uma dicotomia entre pessoas cis e pessoas trans* e sim evidenciar o
caráter ilusório da naturalidade da categoria cis.
O
alinhamento cis envolve um sentimento interno de congruência entre seu corpo
(morfologia) e seu gênero, dentro de uma lógica onde o conjunto de performances
é percebido como coerente. Em suma, é a pessoa que foi designada “homem” ou
“mulher”, se sente bem com isso e é percebida e tratada socialmente
(medicamente, juridicamente, politicamente) como tal.
Mas afinal o que é cissexismo
então?
Primeiramente
é a desconsideração da existência das pessoas trans* na sociedade. O apagamento
de pessoas trans* politicamente por meio da negação das necessidades
específicas dessas pessoas. É a proibição de acesso aos banheiros públicos, a
exigência de um laudo médico para as pessoas trans* existirem, ou seja, o
gênero das pessoas trans* necessita legitimação médica para existir. É a negação
de status jurídico impossibilitando a existência civil-social em documentos
oficiais.
Porém
esses exemplos são mais óbvios, e poderíamos chamá-los simplesmente de
transfobia. O cissexismo é mais sutil. Ocorre quando usamos o termo biológico
para designar pessoas cis, quando usamos certos discursos e certas expressões
que excluem ou invalidam direta ou indiretamente as identidades das pessoas
trans*.
Cissexismo
será, então, qualquer discriminação baseada em uma ou mais das noções descritas
abaixo:
1)
Só existe um tipo de morfologia (corpo) e este deve estar alinhado com o gênero
designado ao nascer;
2)
Só existem dois gêneros (binários: masculino/feminino) e que uma pessoa deve
estar alinhada dentro de um desses dois;
3)
Uma pessoa trans* tem uma vivência menos ‘verdadeira’, e/ou nunca será
‘verdadeira’ se não fizer modificações em seu corpo para ficar mais próxima de
um dos gênero binários;
4)
Uma pessoa precisa estar dentro de um desses gêneros binários, porque senão ela
não será feliz ou não será aceita;
5)
As pessoas que não se encaixam no binário são doentes mentais, tem patologia e
precisam se tratar de algum modo para se curar e que essa cura ou será o
alinhamento ou o processo transsexualizador;
6)
O corpo da pessoa trans* é “bizarro” e ela não pode viver no “entre” (na
fronteira);
7)
Achar que uma pessoa ‘chama atenção’, ‘dá pinta’, é ‘escandalosa’ e não age
como o esperado do alinhamento cis, e por isso ela irá prejudicar a causa LGBT;
(Atenção porque esse discurso está bastante difundido no meio LGBT!)
8)
Uso de termos ofensivos, mas que muitas pessoas (atenção, LGBT!) não acham
ofensivos, ou evocar arbitrariamente (sem a permissão da pessoa) o nome
designado ao nascer, a experiência “pregressa” (falar em “antes” e “depois” é
cissexista também); termos como ‘transvestir’, ’transformista’, ‘traveco’,
‘transsex’, ‘t-gata’ (sim, ‘t-gata’ é um termo fetichizador cissexista e
sexista também, objetificador: atenção pessoas que se identificam como
“t-lovers”); uso de termos como crossdress, drag, drag queen/king, quando você
não sabe qual é a identidade da pessoa;
9)
Designar arbitrariamente a identidade da pessoa. Conhecer alguém e prontamente
decidir qual é a ID da pessoa baseada na imagem – visual e/ou performática –
(da sua posição cis) que você tem dela. Alinhar pronomes e identidades também é
cissexista;
10)
Na simples discriminação pela pessoa não ser cis, por ter qualquer
comportamento diferente do esperado pelo alinhamento cis. Nesse ponto o sexismo
também tem papel importante. Cissexismo e sexismo são faces da mesma moeda;
Em suma, por que nomear as pessoas
cis?
Como
eu disse mais acima, ser cis é uma condição principalmente política (mas não
só). A pessoa que é percebida como cis e mantém status cis em documentos
oficiais não é passível de análise patologizante e nem precisa ter seu gênero
legitimado. Ora homens são homens, mulheres são mulheres e trans* são trans*
correto?
Não.
Historicamente, a ciência criou as identidades trans* (e por isso já nasceram
marginalizadas), mas não criou nenhum termo para as identidades “naturais”. É
por isso que a adoção do termo cis denuncia esse status natural. Denotar cis é
o mesmo processo político de nomear trans*: nomeia uma experiência e
possibilita sua análise critica. Nas produções acadêmicas contemporâneas, tanto
das ciências médicas quanto das sociais, a identidade trans* é colocada sempre
sob análise, tornando-se compulsoriamente objeto de critica.
A
naturalização das identidades cis produz privilégios. Esses privilégios são
diretamente percebidos na medida em que, como dito, pessoas cis não precisam
ter sua identidade legitimada pela ciência; tampouco estão classificadas como
doentes mentais em documentos médicos; não sofrem privações jurídicas de
existência em documentos oficiais; não sofrem violência transfóbica e
cissexista; não precisam dar explicações sobre suas identidades; não são vistas
como pervertidas e nem tem sua sexualidade confundida com seu gênero.
Ao
nomearmos @s “normais” possibilitamos o mesmo, e colocamos a categoria cis sob
análise, problematizando-a. Buscamos o efeito político de elevar o status de
pessoas cis ao mesmo das pessoas trans*: se pessoas trans* são anormais e
doentes mentais, pessoas cis também o são, suas identidades também não são
“reais”; se pessoas cis são normais e suas identidades naturais, pessoas trans*
também são normais e suas identidades tão reais quanto.
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